Há poucos dias atrás conheci Cristiano Moreira e seu livro de poemas Rebojo, editado pela Bernúncia Editora, Florianópolis, em 2005. Livro de 92 páginas muito bem editorado e com fino acabamento, trabalhado pela Nova Letra Gráfica e Editora de Blumenau.
O livro, em sua capa cubista policrômica, desenho de Eduardo Moreira, que não é parente do autor, apresenta, em linha espiralada, próximo à margem direita, ao alto, um decassílabo heróico, que poderia passar despercebido por se confundir com as cores e letras da capa desse belo trabalho poético de Cristiano Moreira. O verso, “Um barco é um livro de madeira”, apresenta acentuação tônica na 6ª e na 10ª sílabas, sem elisão entre a 3ª e a 4ª sílabas.
O poeta ao dizer que um barco é um livro, pretende colocar no barco as propriedades intrínsecas do livro, ou seja, pretende mostrar por uma comparação por idéias que um barco é um disseminador de aventuras e de cultura, basicamente como um livro. Transporta para o barco as funções primordiais do livro. Eis a metáfora primeira. Mas ao complementar, dizendo que é um livro de madeira, o poeta vai um pouco mais longe e retoma o sentido primitivo, etimológico, portanto, que é aquilo de que uma coisa é feita. E mais, fundiu o passado com o presente, pois o significado de “madeira” especializou-se para o de pau. E os barcos da história de vida do poeta e do eu - lírico dos poemas de Rebojo, são feitos de pau, nos estaleiros de Navegantes e da vizinha Itajaí, cidade de Santa Catarina onde nasceu Cristiano Moreira. Eis a metáfora segunda. E é esse o trabalho engenhoso do poeta que constrói e desconstrói seu texto, a partir da capa (parte integrante do longo poema que é esse Rebojo) como os artesãos carpinteiros, montam e desmontam, construindo e desconstruindo os pesados cascos das traineiras, leves baleeiras e muitas outras médias e pequenas embarcações, que partem do Rio Itajaí-Açu para o mar aberto em busca da vida.
Os recursos da retórica grega têm na obra de Cristiano Moreira algo muito mais significativo do que aquelas clássicas figuras de palavras denunciam. Suas metáforas, hipálages, metonímias, antíteses, sinestesias e muitas outras são figuras que trabalham intensamente com o significado e com o significante da língua. Mais que tudo isso, Rebojo é uma viagem ao imaginário que evoca o mar em mansidão e o mar em turbulência, criando alucinógenas construções lingüísticas, como a encontrada no verso “fissura do silêncio em alto mar”. Assim, sua linguagem poética causa instigante impacto no leitor pelo imprevisto, indo além da significação primeira, através da desconstrução do referencial, como ocorre, por exemplo, em
“áccccccccccidas
em alto mar
a fissura do silêncio
é sideral siderúrgica
....................lisérgica!”,
onde o sintagma latente Ácido Lisérgico se desconstrói em “áccccccccccidas....lisérgicas”, numa criação manifesta de novos significados no rumo do poético, para atingir inúmeras outras significações. Todas as estruturas do verso sofrem esse processo de construção e desconstrução, como o próprio movimento inconstante da maré. Estão nesse caso os versos soltos de seus poemas e também os poemas de forma fixa, como o soneto invertido, que inicia com dois tercetos seguidos de dois quartetos.
Do mesmo modo, Cristiano trabalha o trágico e o lírico, em oposição, procurando a forma correta de dizer o subjetivismo do belo, com pequenos textos em prosa poética, como pode exemplificar o texto lâmina – espelho: espanto! Aqui, o trágico limita o lírico, em narrativa realista, cuja linguagem, impregnada de recursos fônicos, aponta para o poético, partindo desse título lâmina – espelho: espanto!, balizado por uma semiológica transformação de grafismos em grafemas. Este pequeno texto, o segundo do livro, retorna ao Leitmotiv do poeta, o mar, num ritmo tão significativo quanto à engendrada forma de materializar seu discurso, com uma sugestiva pontuação e com originais metáforas metalingüísticas, como esta: “...último garrafão de vinho terminara, tornara-se um palíndromo: só cacos”.
Em Rebojo, vento que espalha poesia e palavras, deparamo-nos com formas vocabulares que vão do neologismo à justaposição, passando pela aglutinação, prefixação e conversão. No primeiro mini-texto poético, - “a virada do dorso/ de uma onda quebrando” – um subtítulo do romance O Inútil de Cada Um, de Mário Peixoto, explicado pelo próprio autor, já vamos encontrar palavras com enorme força significativa para unir fundo e forma, enunciado e enunciação. Palavras trabalhadas pelo código lingüístico, com suas estruturas internas re-arrumadas morfologicamente, em sintaxe rítmica, onde aliterações e coliterações aumentam a expressividade narrativa: transalinar seu desejo; o sol seca o suarento corpo cristalino, cru, imerso na unidade compacta da transformação. E mais: o lençolíquido, inconsútil (metáfora táctil); uma corola presa aos vidrolhos compactados; este braço-bigorna; qual brônzea imagem sobrerespira, a primeira ou a última?
Encontramos, ainda, em várias passagens desse livro de Cristiano Moreira formas semiológicas ou semióticas insipientes de apresentar o poético, quer seja nos poemas isoladamente ou em grupos de poemas, unidos por idéias semânticas sobredeterminantes. Assim, ao fim desse primeiro mini-texto, examinado acima, após a indagação feita pelo próprio poeta, seguem vários outros poemas até o início do segundo mini-texto, intitulado lâmina – espelho: espanto!, já analisado.
Outro fator predominante que caracteriza os poemas de Rebojo é o ritmo homofônico e muitas vezes anapéstico, com rimas internas e timbre alternado, entre o aberto e o fechado, em expressivas antíteses fônicas: “ora reticentes à partida/ hora prometida na chegada/ embora temida”.....“oram à obra/ pensamentos dobrados/ fiados na roca do sol/ secos/ posto na carne, no crânio/ o trêmulo trepido insano/ abre – vulva árida -/ disseca memória” (p.18).
Ler os poemas de Rebojo é se deparar a todo instante com um rico material de pesquisa para um estudo profundo de estilística. Assim, aliterações, coliterações em quiasma, os mais variados ritmos com suas antítieses fônicas sinestésicas, tudo isso, combinado com uma morfologia e uma sintaxe transgressoras, faz dessa obra um canto único da poesia náutica catarinense, que mostra a pulsão de vida, imitando o fluxo e refluxo das marés.
O poema Lá, só sal (p.26) é um solfejo metafórico de uma escala musical que ameniza o sofrimento do pescador em alto mar, atividade tida como um palíndromo existencial, no vai-e-vém daquele trabalho extenuante de atirar e recolher a linha do espinhel. O poeta, em linguagem culta, utiliza esse significante palíndromo em sua acepção grega, cuja etimologia mostra aquele que volta sobre seus próprios passos, fazendo desse termo uma parte integrante da constelação semântica daquele ir-e-vir das ondas do mar, no trabalho salgado dos marinheiros. É este um dos mais significativos poemas de Rebojo.
Os poemas anteriores, sem título, mais uma característica de Rebojo, surgem após o primeiro texto em prosa poética e faz parte da grande temática do “sal num copo de carne”, início do livro. Estes dois poemas, “rebojo é um dia ao avesso” (p.24) e “flores cor-rosivas” (p.25) merecem anotações pelas explosões sucessivas de fenômenos estéticos que fazem aflorar a função poética, ao longo mesmo de toda obra. Assim, na estrofe de três versos brancos “o vento vem escanhoar/ a face do rio/ de escarlate tingindo”, surge o novo, por outra opção de leitura, pela transgressão sintática, ou anfibologia, emergindo daí vários ritmos, pois modifica a estrutura da frase, alterando a posição do verbo na oração, deixando a ação por fim, valorizando o seu significado pretendido. Semanticamente, o uso de significantes, por comparação de idéias faz surgir essa metáfora animista cromática, envolvendo todos os três versos da estrofe e dá vida ao vento e cor escarlate ao rio ferido. O ritmo final do poema nos mostra o pé anapéstico, proparoxítono, no dístico com rimas toantes. Importa também salientar que o significante, fidúcia, que surge para compor o ritmo anapéstico, desvinculado da semantização contextual, está integrado ao processo poético dominante da poesia de Cristiano Moreira, numa desconstrução do significado e reconstrução de novas significações.
Já o poema seguinte, “flores cor-rosivas” (p. 25) inicia com um trocadilho metafórico, amparado na corrosão das coisas exercida pelo sal, metonimicamente usado no lugar do mar, domínios do deus-profeta Proteu, por isso mesmo pastor de esperanças no reino supremo de Poseidon. A estrofe de quatro versos brancos se ergue sonora repleta de aliterações, início de um ritual que pede proteção às entidades do mar, numa miscigenação de culturas, onde o sincretismo onírico e religioso invoca e evoca, ao mesmo tempo, deuses gregos e orixás africanos do candomblé. O poema continua com uma antítese latente, proporcionada pelos significados manifestos dos significantes “noturna” e “ebúrneos”, para, mais abaixo, após interessante marcação semiológica em “espuma – barra”, surgir, por metalinguagem, o verso: “em pleonasmos brancos”.
Assim, é importante que se registre aqui, também, o uso culto do idioma, o domínio dos discursos ideológicos da cultura ocidental e o seu trabalho transgressor com palavras, materializado, em muitos outros inúmeros versos, mas principalmente aqui, no último segmento do último poema (p.28), após uma espécie de sinafia métrica (co-/p/o d’água para limpar a goela/ no banho/), ao terminá-lo com um dístico, Leitmotiv de sua poesia, contendo esta sugestiva e metafórica mensagem: “dor e cansaço são magias que fazem/ flutuar as embarcações”.
Outra forma encontrada por Cristiano Moreira para materializar poeticamente seus sentimentos, através da escrituração de seus versos, foi trabalhar com o poema concreto e com formas semióticas de significação. Não faremos aqui distinção entre semiótica e semiologia. Nossa análise privilegia a semiologia de Eric Buyssens, sabendo que com isso não entraremos em conflito, pelo menos nesta abordagem crítica, com a posição semiótica de Décio Pignatari, por exemplo, nem com as teorias do grupo concretista dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Portanto, pode-se dizer aqui que a poesia de Cristiano Moreira, apresentada nesta obra, tem o cintilar da fagulha criativa de um “noigandres” poético pela invenção em criar. É só analisar e perceber, com um olhar específico, como fez Maria Luísa Ramos, a respeito do poema de Augusto de Campos em, Noigandres 5:
“A disposição ziguezagueada das palavras é um significante material da velocidade com que as coisas se transformam: tudo se passa como um relâmpago, símbolo muito explorado com relação à efemeridade da existência. Poder-se-ia acrescentar ainda outra conotação da forma ziguezagueada, um permanente fluir e refluir que identifica o último verso do poema com o primeiro, de modo a poder-se iniciar tudo de novo, indefinidamente”, in, Fenomenologia da obra literária, São Paulo, Forense, 1969, p.45.
Do mesmo modo, pode-se ver nos dois poemas de Rebojo, acerca das orgias/ no “Beco da Navalha”, página 50 e o seguinte, sem título, na página 51, que explica o anterior, uma forma bem próxima da desintegração do verso tradicional. No primeiro poema da página 50, as palavras se dispersam visualmente, como fragatas alucinadas, predadoras do alimento alheio, que agem de modo mais agressivo do que agiriam as alvas gaivotas “em altoceano/ como aparecem formigas/ em batalhas, Bataille/ em desnecessária competência...”, na explicação metalingüística dada a seguir, criando uma metáfora do Desejo. Para o poeta, “corps morcelé”, no poema dilacerado, o significante se consubstancia em palavras-gaivota. A disposição das palavras no primeiro poema (cerca das orgias/ no "Beco da Navalha”) pode ser visto ainda como o retalhamento da navalha, antítese entre Eros e Thanatos.
Sabe-se que o poema concreto comunica sempre a sua própria estrutura, da mesma forma como, por exemplo, na Teoria da Comunicação, Marshall McLuhan comunicara ao mundo acadêmico, na década de 60, que “o meio é a mensagem”. Segundo Augusto de Campos, poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de funções. Essas formas de se trazer outras dimensões para o visual do poema, a criação de “uma totalidade sensível verbivocovisual, de modo a justapor palavras e experiência num estreito colamento fenomenológico, antes impossível”, parece que é mais um milagre estético da modernidade que clama por contestações. E a transgressão é a ferramenta mais importante do poeta.
Assim, percebe-se em muitos poemas de Rebojo uma tentativa do autor em misturar o tradicional com o moderno, abrindo espaço para o concretismo. Os poemas de Rebojo não têm título. Quando o título surge (p.34), o grafismo impõe um ideograma que deverá ser codificado para que se obtenha um significado. Há em muitos poemas uma mistura de texto em prosa poética com textos marcados com versos livres, com estrofes isométricas e o uso do espaço como elemento de composição significativa e pertinente (p.33) e pode quebrar a linearidade da escrita, contestando o significado etimológico de “verso”, significante que passa a ter outros significados (p.45).
Os poemas que surgem após “Tábua de Marés” (p.55) apresentam uma sucessão de imagens acústicas com significados trabalhados por fértil imaginação, costurando o poético, fazendo-nos compreender o “movimento inconsútil”, metáfora que identifica os movimentos das ondas do mar com uma grande túnica líquida, sem costuras, talvez azul ou verde, mas “diáfano lençólíquido...” (p.57) Antes, Tábua/ de Marés/) sístoles e diástoles/ de linguagem turva (, título de mais um bloco de poemas, transgride a ordem digitalizada dos vocábulos em frase, distorcendo os dois parênteses, grafismos que se transformam em grafemas, mais uma vez, pois adquirem significado: o de excluir, antes de incluir. O semiótico ainda surge, timidamente, no poema III, (p.59), quando o vocábulo v a z a n t e s (tentativa de quebra da arbitrariedade do signo) surge com letras e s p a ç a d a s. Já no poema IV, a formatação apresentada precipita a degradação do rio, o Rio que acompanhou a vida de Cristiano Moreira, o Itajaí-Açu (p.60). Aliás, mais adiante, no poema IV do bloco “cortejo fluvial das carpideiras”, repleto de aliterações, a forte e intensa presença do Rio Itajaí-Açu sugere o aprisionamento da vida no espaço ribeirinho da sua existência.
Assim, por tudo que foi apresentado, a poesia de Cristiano Moreira, mostrou em Rebojo que tem o dom de falar alto, para nos sensibilizar e nos fazer imaginar o vôo das aves do rio e do mar, de onde vem a vida, precipitando o belo que sua escritura explicita, quer esteja ele nas “lágrimas dos peixes que jamais serão enxutas” ou nos mercados com “o cheiro do peixe sob as unhas devolutas” do Nego Dico.
ATÉ A PRÓXIMA
Um comentário:
Gostei de ler isso...Vou procurar o livro.
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