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31 de outubro de 2018

COMO UMA PESQUISA ARQUEOLÓGICA, MAS LITERÁRIA TAMBÉM



            O PROGRESSO DA FOZ, grupo cultural, desde 1978, acaba de publicar a obra CANTAREIRA 61, A Casa de Raul Brandão, de autoria de Joaquim Pinto da Silva. Trata-se de uma pesquisa com lastro em farta documentação iconográfica, excertos cartoriais, como escrituras e registros de imóveis, plantas arquitetônicas de construções, as mais variadas possíveis, retidas às prefeituras do entorno da cidade do Porto, além de textos das obras notáveis de Raul Brandão, entre elas “Os Pescadores” e os contos de “História do Batel Vae com Deus e da sua Companha”. A importância de onde nasceu e cresceu um escritor existe, na razão direta em que a sociedade da época, com todas as suas dimensões, físicas e imateriais, por exemplo, seja retratada na obra, com alusões aos acontecimentos relevantes surgidos naqueles espaços circundantes, que um dia pertenceram à vida pujante de indivíduos simples como nós, que lá desempenharam seus papéis de personagens importantes, mas desprovidos de historicidade. Enfim, serve, para, como disse o autor do livro, CANTAREIRA 61, que o leitor tem agora a possibilidade de folhear: “para encontramos elementos de índole social e local que nos ajudam a construir uma história, uma paisagem da sociedade urbana de seu tempo”. Raul Brandão foi um escritor português, que viveu nos séculos XIX e XX, famoso pelo realismo das suas descrições e pelo lirismo da linguagem retratando a vida simples do entorno da Foz do Rio Douro, encontrando o mar.  Escreveu, entre outras obras, Humus, Os pobres, Memórias (2 volumes), Impressões e Paisagens, sendo que seu principal livro é, incontestavelmente, Os pescadores. História do Batel Vae com Deus e da sua Companha, são escritos que, mais tarde deram origem à obra maior, Os pescadores. A tese de Joaquim Pinto da Silva é de que Raul Brandão não nasceu e viveu a maior parte de sua vida no local onde tradicionalmente lhe atribuem. Para tal, debruçou-se sobre o farto material descrito acima e como um arqueólogo debruçou-se sobre os caminhos da Cantareira, removendo as camadas do tempo e escreveu sua tese. Vale a pena conferir. Pelos textos citados na pesquisa, o leitor pode tomar conhecimento da força da escrituração de Raul Brandão. O trabalho de Joaquim Pinto da Silva traz esses textos à cena, oferecendo-nos a possibilidade de sentir a força poética de seu texto, descrevendo a vida, os costumes e as atividades dos pescadores, daquela época, numa sociedade dependente da pujança do mar que invade a foz do Douro: “Um dia lança-se a nossa catraia ao mar. Os calafates, com estopa embreada, tomam-lhe as juntas de pinheiro por pintar. Alguns homens dão-lhe uma mão de piche, e um desenha-lhe nas tábuas do costado: Senhora dos Navegantes. Chega da Póvoa o Manuel Serrão, homem de poucas falas e calças de lona branca, e talha-lhe a vela estendida na areia. Corta-se o mastro do pinheiral do Lage. O senhor abade – toca o sino – asperge-a de água benta, e a companha, com os barretes na mão e fatos de ver a Deus, espera o último latim para a lançar sobre roletes ensebados pela lingueta abaixo”. Sempre são interessantíssimas suas observações sobre os conteúdos dos textos que consubstanciam a longa e fundamentada pesquisa, porque Joaquim Pinto da Silva, além de produtor cultural é professor de Língua e Literatura Portuguesa, aplicando seus conhecimentos nesse trabalho de investigação, sustentado por procedimentos inerentes à linguística textual. O autor mostra, assim, que domina, com argúcia, técnica e sensibilidade a leitura crítica dos documentos, que estão a provar o que sustenta e, ao mesmo tempo, encanta o leitor com um texto irreparável, suave e gostoso de ler. É exemplificativo a nota “António Luís”, publicada em 15 de setembro de 1902, de O Século, Revista Literária Scientifica e Artistica, dirigida por Eduardo Schwalbach Luci, apud, Vasco Rosa, in “A Pedra ainda Espera Das Flor, Dispersos”, Quetzal, fevereirode 2013, pág. 293. Transcrevemos todas essas informações para mostra como é seguro o trabalho de Joaquim Pinto da Silva, nessa pesquisa que mistura inúmeras facetas de seu plurifacetado repertório cultural. Esta investigação é técnica, mas suavizada pela sensibilidade poética de seu autor que tira da referencialidade o seu peso, suavizando-a com a languidez da prosa poética. Como dissemos, trata-se de um trabalho importantíssimo esse, o de buscar o lugar verdadeiro onde nasceu, viveu e circulou Raul Brandão. Só por isso estaria justificado tal hercúleo trabalho de pesquisa. Mas há mais nessa empreitada. Há a exegese das múltiplas investigações, pois as mesmas, como foi aqui mostrado, remetem o leitor para um intertexto subjacente, diretamente relacionado à cultura, que pertence ao geral do conhecimento humano. Trata-se, portanto, de um precioso trabalho, realizado por Joaquim Pinto da Silva, uma espécie de escavação arqueológica do tipo impactante, como a escavação de Schliemann, que desenterrou Troia pela leitura homérica.

ATÉ A PRÓXIMA

17 de outubro de 2018

A SOLIDÃO




Somos todos indivíduos que só existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado em sua amedrontadora solidão. Somos sociais. Dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado. 
Reflexões sociológicas, antropológicas, psicológicas, psicanalíticas à parte, contrariando todos os textos teóricos de Marx, Durkheim, Weber, Claude Lévi-Strauss, Freud e Lacan, por mais que o meio em que vivo esteja repleto das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagem comigo, sinto-me, muitas vezes solitário.
A solidão é amedrontadora, mas sei conviver com ela. Ela, muitas vezes me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras do supermercado, refugio-me sempre no minúsculo e ridículo quartinho de leitura de meu reflexivo apartamento. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas a vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Pessoas comprometidas com, também, todos os sentimentos, os mais variados possíveis, inerentes ao ser humano, que interage para ser, e reage à solidão. Então também aprendi a afastar esse tormento que nos isola e que nos aprisiona. Aprendi a viver nessa dualidade barroca, gostosa, que projeta a alegria de viver em grupo e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, talvez, por pura incompreensão dos fatos ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. 
Mas a vida é assim mesmo, misteriosa e incrivelmente criadora de situações dicotômicas. Saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta (a alegria encanta, mesmo), mas que, também, deprime e mata (a solidão é um terrível assassino), é para poucos. Esses mistérios não foram explicados nas escolas regulares por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios pertencem à escola da vida. Pertencem a outro sistema simbólico.
Um dia, visitando a românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele estranho funcionário, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava sem família num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente todas aquelas estórias escritas nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior do sagrado templo bracarense, respondeu-me que aqueles corpos intactos por mais de duzentos anos representavam um mistério de Deus. E transformando-se, alegre e feliz, quase que gritava: “Mistérios de Deus. Mistérios de Deus! ”

ATÉ A PRÓXIMA
  



4 de outubro de 2018

UMA FORMA GENÉRICA DE VERBO



A 35ª Oktoberfest começou ontem, mas a chuva impediu a realização do desfile que abre as festividades dessa que é a maior festa da cerveja fora da Alemanha. Ela é realizada, aqui, em Blumenau, no início do mês de outubro, do dia 3 ao dia 21.

O plano B dos organizadores foi executado dentro dos vastos salões do Parque Vila Germânica. Lá estavam os principais meios de comunicação do Vale do Itajaí e uma repórter da NST, afiliada da Rede Globo, em Santa Catarina, depois do desfile interno terminar, mas ainda durante a festança animada, que iria varar a madrugada, perguntou a um jovem como ele estava se sentindo. O rapaz entrevistado, de boa aparência, fantasiado de “Fritz”, muito alegre e sorridente, respondeu:

- A gente foi “surpreso” pela chuva.

Realmente, no horário do desfile de abertura, lá pelas 17 horas, caiu um aguaceiro danado na cidade de Blumenau. Ninguém esperava por isso, mesmo com algumas nuvens negras ainda no céu, depois mesmo de alguns pinguinhos sem nenhuma pretensão.... Até um solzinho pálido havia saído lá pelo meio da tarde, dando muita confiança aos patrocinadores de que mais um belo desfile alegórico, tradicional na abertura dessa festividade, iria acontecer. O povo esperava assistir a ele com muita sede e disposição para entornar cerveja de graça, goela abaixo. Mas não foi isso o que aconteceu. Caiu chuva para desanimar. Mas o plano B solucionou o problema e o desfile foi transferido para dentro daqueles enormes salões. Lá, com a festa bombando, a repórter fez a redundante pergunta ao nosso “Fritz” e obteve a tal esquisitíssima resposta. É claro que todos os telespectadores entenderam o que foi dito pelo rapaz, que não falou em alemão, não. Respondeu em nossa língua, mesmo. Ele quis dizer que todos que estavam esperando pelo desfile foram surpreendidos pela chuva intensa, que desabou naquela hora. Mas por que o rapaz disse “surpreso”, em vez de surpreendido?

Bem, ainda tem uma coisinha antes de tentar explicar isso. Ele usou o termo A GENTE, uma expressão composta por duas palavras (a – gente), uma espécie de pronome pessoal, correspondente a “nós”, mas que se refere à 3ª pessoa do discurso. Então, esse pronome pessoal A GENTE leva o verbo para a 3ª pessoa, no caso, singular. Assim: A gente foi “surpreso”....... E ainda se incluiu na concordância, pois disse “foi surpreso”, usando a forma no masculino, utilizando-se, ainda, da voz passiva... Agora vamos para o “surpreso”.

Nós pensamos rápido. As palavras que vão vestir nossos pensamentos, materializando-os com bonitas letras e seus sutis acentos, já estão prontinhas para entrar em cena. O Rapaz, ao responder à repórter da Globo regional, já tinha pensado na chuvarada que atrapalhou o desfile e nada foi mostrado ao público, como as formidáveis máquinas de servir Chopp, muito criativas e engraçadas, que a cada ano aparecem modificadas e mais engraçadas.... Mas o rapaz tinha de colocar, também, as famigeradas palavras, para dizer que ninguém esperava pelo temporal que desabou. Aí é que a porca torceu o rabo.  O cara sabia que a chuva pegou todo mundo de surpresa. Sabia que todo mundo ficou triste com o fato de a chuva ter prejudicado o desfile. Sabia, também, que foi uma surpresa geral para todos.... Mas cadê as palavras? As danadas não saiam.... Onde elas estariam? A surpresa é que dominava o pensamento do rapaz. O negócio foi a surpresa! Foi uma grande surpresa essa chuva danada! Eu fiquei surpreso, pensou lá no fundo de sua cabeça, já encharcada com as mais saborosas cervejas artesanais! É isso mesmo! Todos ficaram surpresos. Mas eu sei que existe o verbo SURPREENDER, pensava o rapaz vestido de alemão Fritz, já meio bêbado! Eu sei que o verbo é esse. Mas minha cabeça não está funcionando bem! Como eu coloco esse verbo aí nessa minha frase? Meu Deus! Socooooorrro! No entanto, naquela confusão mental, a palavra mais significativa que representou tudo aquilo foi SURPRESA, sem dúvida alguma. Então, simplesmente, ela se adaptou à forma verbal do verbo SURPREENDER. Não saiu o FUI SURPREENDIDO, mas saiu o seu genérico: “fui surpreso”. Afinal, não existem as formas PRESO ou PRENDIDO, de PRENDER e também SUSPENSO ou SUSPENDIDO, de SUSPENDER? Por que não pode existir e ser usada a forma “surpreso”, que me veio claramente à cabeça? Claro! Vou emprega-la. É ela mesma! E o rapaz, vestido de “Fritz”, meio bêbado e bem-apessoado, soltou essa “pérola linguística“, com um sorriso repleto do melhor lúpulo e da mais recatada e distinta cevada: - A gente foi “surpreso” pela chuva.

 ATÉ A PRÓXIMA


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Quem sou eu

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.