Vou falar na primeira pessoa, porque a mentira nunca vem em
primeiro lugar em qualquer narrativa. Ela vem, muitas vezes dissimulada, lá no
fim da história. O que vou narrar são fragmentos de uma vida dedicada ao
ensino. Atividades dentro de salas de aula, há muitos anos... Desde sempre! Lembro-me
muito bem. Há mais de 60 anos eu inovava em sala de aula, tentando dar aulas de
felicidade. Minhas inovações pedagógicas surgiram muito antes da Lei 5697, de
1972 e, por essa época já havia abolido as notas, na escala decimal, substituindo-as
por conceitos. Quem foi meu aluno, nesse tempo, pode tudo isso testemunhar.
Eram conceitos motivadores, que se encaixavam na faixa etária das primeiras
séries do Curso Ginasial. Ficaram famosos, entre a gurizada, o Porquinho Rindo; o Porquinho Sério; o Porquinho
Triste e o Porquinho Desesperado.
Não havia correspondência entre estes termos linguísticos e os números. Era só
isso, mesmo. Os alunos gostavam da minha avaliação, mesmo os que tiravam Porquinho Desesperado, evidentemente um
conceito nada interessante. Eles interpretavam o que aquilo representava, pois
comparavam esses conceitos com seu desempenho nas provas. Havia sim, embutido
nos conceitos, um valor, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. E todos
entendiam. Muitos exibiam o conceito obtido numa avaliação como um troféu
gostoso, lúdico, conquistado por sua própria performance. Cada conceito tinha
sua imagem característica, uma caricatura gráfica do que, denotativamente,
representavam. Não se destruía, nas correções das provas, a participação do
aluno, em suas respostas, muitas vezes criativa, quando respondiam às questões propostas.
Não corrigíamos nada com palavras incompreensíveis; nada era censurado; não rabiscávamos
a prova de ninguém. Os equívocos e os “erros” eram transcritos na margem,
discretamente. Nunca valorizávamos o erro. Abolimos, também, o uso do terno e
gravata como uniforme do professor em sala de aula, substituindo-o pelo jaleco
branco. Fiquei até parecido com médico! Foi uma atitude unilateral, passível de
repreensão, eu sei, mas o calor de 40° da Cidade Maravilhosa em seus verões de
arrepiar, falou mais alto... Abolimos o uso do livro didático em sala de aula e
sofremos a fúria das editoras especializadas. Passamos a usar qualquer jornal
do dia, sem exigir que ninguém trouxesse um, em especial. Tentávamos fazer com
que o aluno adquirisse o hábito de comprar e ler jornal, mesmo nos dias em que
não tivessem aula de Língua Portuguesa. Pouca coisa? Creio que não. Eles
aprenderam a gostar de ler. Quem não gosta, nos jornais, da seção das Histórias
em Quadrinhos, um “entre-lugar” dividido com a literatura e o cinema? Nunca
eles haviam tomado a decisão de comprar alguma coisa sadia, para consumo
próprio. Foi a primeira vez. Estavam comprando e consumindo informações e
notícias, as mais variadas possíveis, a primeira parcela de uma enorme conta de
somar, na contabilidade da vida, formando, cada um, o seu incipiente repertório
cultural. O próximo passo foi abolir funcionalmente o tradicional quadro-negro,
onde se escrevia qualquer bobagem. Só o usávamos para a fixação da
aprendizagem. Creio que pela primeira vez se utilizou, em colégio público, nas
aulas de Língua Portuguesa, material tão, aparentemente, incompatível com
fonemas, sílabas, classes de palavra, conjugações, vozes verbais, figuras de
sintaxe, polifonia, metafonia, tudo misturado com muita satisfação e alegria.
Passamos também a usar cola plástica, tesoura, barbante,
papel de mimeógrafo, recortando as notícias do dia, interpretando-as e com elas
partindo para a leitura e para as análises de todos os tipos programáticos, deixando
a sala de aula imunda para o professor seguinte de outra matéria, que me
substituiria. Depois de algum tempo e muitas reclamações, as aulas de Língua
Portuguesa passaram a ter mais alguns minutos de duração e foram colocadas nos
últimos seguimentos do horário do dia, fechando o turno da manhã. Mais uma
aceleração pedagógica, inovadora, com reflexos futuros. (Anos depois, dando
aula no Colégio de Aplicação, Fernando Rodrigues da Silveira, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, verifiquei que as aulas de todas as
disciplinas passaram a ter a duração de 100 minutos) Foram atitudes pedagógicas
tomadas há mais de 60 anos, em escolas públicas oficiais, sob a
responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara (hoje, Estado
do Rio de Janeiro). Sabem em que colégio tudo isso começou? Nada mais, nada
menos que no maior colégio do Rio de Janeiro, na época: o Instituto de
Educação, aquele mesmo! Aquele prédio lindíssimo, estilo barroco mexicano, na Rua
Mariz e Barros, entre a Praça da Bandeira e a Tijuca, que formava as nossas
professorinhas primárias, com diminutivo afetivo, acima de tudo... Pelo que
fizemos, quase apanhamos das mães dos pequeninos alunos que não entenderam
imediatamente o que estava acontecendo. A Direção queria me expulsar do
magistério. Lutei bravamente, numa época difícil de regime político de exceção,
mas consegui não ser penalizado e, de certa forma foi reconhecido, saindo até
vitoriosa a minha teoria revolucionária de motivação na aprendizagem. Se fomos
seguidos? Não importa. O que importa é que fomos reconhecidos, não
imediatamente, pois a educação é um processo lento e contínuo. Não existem
frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer. Depois do Instituto
de Educação fomos trabalhar no Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, o famigerado
Conde de Bobadilha, aquele que matou mais de duzentos mil índios, na região da
Foz do Iguaçu, Paraná. Minha primeira providência no novo colégio foi pedir
através de ofício à Secretaria de Educação, a mudança do nome daquele estabelecimento
de ensino médio. Queriam me expulsar outra vez. Lá também inovamos. Criamos a primeira
radioescola do Brasil, em colégio público de Nível Médio, graças à compreensão
de seu diretor, um professor fabuloso, um sábio, Jairo Dias de Carvalho, meu
dileto amigo, que não está mais entre nós. O empreendimento foi reconhecido
pelo Secretário de Estado de Educação, na época, Celso Octávio do Prado Kelly,
pai do João Roberto Kelly, o músico carnavalesco de marchinhas irreverentes, estão
lembrados? De lá saí para o Colégio Estadual Barão do Rio Branco e introduzimos
a semente dos festivais de música e poemas escolares, numa mistureba cultural
de shows e poesia. Além disso, construímos,
com recursos próprios, uma sala especial de Latim. Isso mesmo, Latim. Parecia
uma sala de museu. Mas tudo em educação,
se não tiver conscientização e prática contínua, se esvai como água entre os
dedos e a sede do saber não se satisfaz, deixando morrer à mingua o desejo de
se crescer intelectualmente... Lutei, lutei sempre. Coloquei em livretos essas
experiências todas, publicadas pelo editor, Lúcio de Abreu, da Editora Gernasa,
um arauto da boa e inovadora educação, um grande amigo, que também já se foi e
a quem muito devo, por acreditar nas "maluquices"
daquele jovem e inquieto professor.
Nunca acreditei que somente o cuspe e giz pudessem servir para muita coisa
dentro de uma sala de aula. Pois é, existe ainda no Brasil uma grande defasagem
entre o que o aluno espera da escola e aquilo que ela oferece a ele. Desenvolvi
esse tema também em um livreto da Editora Gernasa, do meu bom amigo Lúcio... Se
estes fragmentos memoriais vão servir para alguma coisa, também não sei dizer.
Sei que enquanto me lembrar do que fiz, por amor à cauda que abracei,
profissionalmente, e que serviu para implementar a cultura e o saber, ajudando
o próximo, vou registrando em textos memorialistas, antes que as nuvens negras
da tempestade cerebral descarreguem seus raios fúlgidos, mas trágicos, em minha
cansada memória e apague tudo. Numa época em que a figura do professor está tão
desprestigiada, sirva essa voz tosca desse mestre-escola para registrar que
ensinar é ainda a mais nobre de todas as profissões. Assim, entendo e sempre
entendi que o professor tem de ser mestre do absurdo, porque só os grandes
impactos constroem, enquanto as pequeninas coisas, sempre repetidas, decoradas,
empurradas com a barriga, não funcionam, pois não têm graça nenhuma, corroem,
enjoam e estragam a nossa vida, a vida de todos nós, a vida do homem comum, a
vida de nossos alunos. Todos nós precisamos - o aluno em particular - de felicidade para viver e o professor tem,
por obrigação primeira, abastecer essa demanda. O professor, antes de tudo deve
ser professor de felicidade.
ATÉ A PRÓXIMA
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