Conheci o Leo Yang na PUC-Campinas, no final de 2010, num curso sobre Jornalismo Literário, ministrado competentemente por outro jovem talento, o jornalista Fabiano Ormaneze. Durante os sábados em que estivemos reunidos na sala de aula, no bonito Campus da Pontifícia Universidade Católica das mesmas Campinas do Mato Grosso de alguns séculos atrás, conversamos muito e interessadamente sobre poesia e arte em geral. Percebi logo que o Leo estava despontando para a literatura, embora cursasse filosofia na UNICAMP. Hoje ele está em viagem de aprimoramento do seu inglês, lá na gélida, distante e inigmática Irlanda. Mas o Leo, longe desse Brasil ensolarado, continua a se exercitar e me mandou essa preciosidade de texto. Reproduzo em meu BLOG por encontrar ali um bom motivo para incentivar a produção literária dos jovens talentos que despontam para essa arte.
QUESTÃO DE MESA
Leo Yang
Estou sentado na cabeceira de uma grande mesa. Ela só é grande, não tem nada de luxuosa. É inacreditável que em alguma vez a estampa dessa toalha possa ter sido considerada bonita. Bebo café solúvel imaginando que estou bebendo café expresso. Pessoas entram no cômodo e saem do cômodo, me dão bom dia e me dão bom dia novamente, mas fica a impressão de que em geral nada aconteceu. Essas pequenas coisas, que dão a real estrutura da vida, nunca conseguiram me convencer de que são importantes. O boneco de neve da caneca me diz ‘’feliz natal’’, e eu respondo ‘’para você também’’. Ganhou a vida, esse sim ganhou a vida. Se não fossemos tão hiperativos, seria tudo mais fácil, um só objetivo, uma conclusão e um certificado de ganhou a vida. Felizes os bonecos de neve, são deles o reino da vida fácil.
Lembro a primeira vez que nos vimos, estávamos caminhando numa calçada e nossos olhares quase se encontraram, mais um pouco e se encontravam, até casavam. O meu mirava seus olhos, de um castanho raro por aqui, entrincheirado numa olheira. O seu tentava mirar meu livro, mas tinha de se desviar de dedos, tinha de se adequar a todo o movimento de quem caminha com pressa. Que eu posso fazer se você é e sempre foi apaixonante? Agora só consigo conhecer pessoas imaginando que estou lhe conhecendo melhor.
Não sei se estou aqui na mesa, digo, realmente. Estou mesmo é enveredado nesses sem fim de livros de mundos fantásticos e amores que parecem doer até mais do que o nosso. E leio tudo, tudinho, só pra ficar com a cabeça aqui, e não lá, distante dois ou três ônibus, três ou quatro oceanos. Não sei se o que sinto é ciúmes, e se for, é inofensivo. Eu só queria compartilhar as tantas coisas que você faz enquanto não dorme, e se possível, também as que faz enquanto dorme. Se for ciúme, não te prejudica em nada. Pra mim, embaralha os pensamentos. Preciso me distrair, preciso de um chão, uma realidade que seja realmente a minha. Quando todos se retirarem vou usar a faca para escrever na mesa um refrão, algo como: “Você sempre chega e já some, se e é por mal ou por bem eu não sei, só sei que me consome.” Cê sabe que não precisa se preocupar em se encontrar nessas coisas todas que escrevo. Deve ser difícil, claro, pois trata-se de você. Tente não se preocupar, essas coisas são confusas, confusas até pra mim. Não sei nem se te odeio saudosamente ou te amo odiosamente. Preciso de outra garota para lhe esquecer, esquecer esse seu cheiro. Mas como é que podem todas as garotas da cidade estarem ocupadas? É impossível que nenhuma delas esteja sozinha, morrendo de vontade de ter um cara como eu. Um cara que sabe diferenciar cafe latte de cappuccino e Leibniz de Descartes. É impossível que nenhuma dessas garotas não seja nem um pouco orgulhosa e não se importe que eu a faça esquecer o próprio nome, para que eu possa chamá-la pelo seu, e a ensine a caminhar daquele exato jeito leve que você caminha.
Hora ou outra passo na rua onde quase trocamos olhares. Lá era nosso covil, onde tudo ficava bem, nada podia tirar nossa paz. Caminhar sempre era suficiente. Mesmo assim eu perguntava:
_Não tem cigarro?
Você nem respondia, sabia que era só fitinha de escritor. E ria enquanto eu dizia que escritor precisa fumar para poder ter uma caixinha de ferro da Marlboro, toda amassada, para quando uma garota pedir um cigarro poder inventar uma história de como a lata se amassou, num deserto em que ele fez mochilão no dia em que pulou de um avião para encontrar e pedir a mão da garota da sua vida, sempre a garota da vida.
Você ria, sabia que qualquer uma, além de rir das minhas rimas, não ia querer nada com um imbecil apaixonado. Ignorei e acelerei para chegar na parte em que o escritor sacando o cigarro olha lá na porta do fundo dos olhos da garota e mostra que é um apaixonado sim, só que neste momento por ela. Você me cortava com um beijo. No fim das contas, sabíamos que eu nunca seria um desses escritores, nem ninguém me pediria nada. Deveríamos ter ido para aquela rua, ao invés de termos sentado e discutido nossa vida na cozinha numa pequena mesa dobrável. Era muito estreita para acomodar nossos mundos. Dois mundos inteiros, repletos de problemas. Ambos no limite entre o orgulho e o desabar em águas. Ah se tivessem sido as águas, talvez as coisas se fossem ralo abaixo e pronto. Mas as lágrimas não venciam as expressões fechadas. Você falava muito e fumava um cigarro mais forte do que o usual, eu sabia que era, te conhecia tão bem que sabia o cheiro da sua fumaça. E quando cê me viu com a caneta, escrevendo nos braços, não perguntou o que eram aqueles símbolos, só recriminou:
_Parece criança, escreve em tudo o que vê pela frente.
Pensei repetidas vezes que o corpo era meu, o corpo era meu, meu e meu. E na minha cabeça, de paisagem de fundo, outro pensamento um pouco mais baixo dizia que de agora em diante você não iria mais interferir na minha vida. Escrevi mais forte. Estava escrevendo na minha pele o mapa de uma nova vida, sem você. Você tossia forte.
_Compra veneno de uma vez, já que vai comprar cigarro tão ruim.
_O corpo é meu.
Tossiu, tossiu e tossiu. Um bater de olhos no cigarro foi o bastante para ver. Tossiu, porque tinha um cigarro rabiscado de poesias. Tossiu. Essa mania minha de escrever em tudo que é lugar, sei que você ama. Você foi ao banheiro vomitar poesia e eu saí de casa. Não fui capaz de entender o que uma terceira voz dizia na minha cabeça.
Nada disso importa agora, preciso aceitar que o que era uma vez agora não é mais. E não é culpa sua, nem minha, nem daquele outro ou daquela uma. Não dá pra culpar alguém por ter um olho claro, um cabelo castanho ou uma doença genética. Tem coisas que não nos dão escolha, parece que só nos encaminham e nosso corpo vai que vai sozinho. Não se culpe por ter pulado algumas páginas de todas aquelas cartas, nem por ter chorado quando recebeu aquelas tantas rosas que joguei na sua varanda. Faltava sentido mesmo, tanto que nem percebemos quando tudo já tinha acabado. Você tem que prometer que não vai se culpar. Só assim posso dormir tranquilo, sem tanta culpa por estar esperando uma mensagem de celular que nunca vai chegar. Poderei dormir nesse hotel barato com essa mesa gigante, nesse universo barato com essa solidão gigante. É só que, bem, eu não preciso dela, não dessa mesa imensa. Aquela de canto de cozinha, dobrável, me parece perfeita agora. Gigante para dois mundos se reconstruírem.
ATÉ A PRÓXIMA
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