Há
65 anos publiquei no “Jornal do Commercio”
do Rio de Janeiro, no Caderno de Cultura, um artigo intitulado Artesanato
vocabular no “Cancioneiro do Natal”. Cancioneiro do Natal é um livro de poemas de Stella Leonardos, cuja
Primeira Edição, saiu, no Rio de Janeiro, editado pela Livraria São José, em
1964. Recebi-o da autora, autografado. São comentários críticos, formulados, a
partir de uma crítica intrínseca, ainda não muito cultivada na época, mas que
eu seguia rigidamente, orientado que fui por excelentes mestres, atentos à
modernidade que envolve qualquer ciência e que não foi diferente com a Crítica
Literária. Muito aprendi com estes professores com quem, mesmo depois de
formado, mantive relacionamento de profunda e fraterna amizade. A eles, minha eterna
saudade, pois me ensinaram que o texto literário pode ser esmiuçado – e deve –
com toda a emoção da exegese, mas também com cientificidade, a qual deverá
incidir nas diversas análises que levarão ao leitor explicações seguras sobre o
contínuo transformar e o constante fazer literário. A meus mestres amigos, que
hoje são referência para os estudos da Crítica Literária, Textual e Filológica,
minha saudação e reverência: Tasso da Silveira; Leodegário A. de Azevedo Filho,
Afrânio Coutinho, Joaquim Ribeiro, Eduardo Portella, Jesus Bello Galvão, Sílvio
Elia, Jairo Dias de Carvalho.
Passados mais de meio século, republico este artigo, procurando homenagear a grande poetisa, Stella Leonardos que, com seus 94 anos de arte poética e com sua extensa e significativa obra literária, já está eternizada na história da Literatura Brasileira, como pertencente à Terceira Geração do Modernismo. É claro que se fosse reescrevê-lo, o faria com outra visão teórica, mas atentando para os significativos empregos de um vocabulário inovador para a sua época e rico em significados subjacentes. São inúmeros os seus livros premiados e, entre eles, Poesia em 3 Tempos (1957), Cancioneiro do Natal (1964), Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência (1974), Romanceiro da Abolição (1986) e tantos outros.
Segue o texto cinquentão:
“Cancioneiro do Natal” é um dos mais recentes livros de poesia de Stella Leonados, lançado pela Livraria São José, em 1964. Poesia da mais alta sensibilidade estética, impregnada de lirismo impressionista (“E a Estrela ia roçar nosso telhado”), num ritmo que se distribui vivo e sonoro nas duas partes da obra. Em Natal no Brasil o metro é curto, redondilhas, principalmente, envolvendo-nos o tema natalino, inspirado em nosso folclore. Contudo, é a arte de criar novos vocábulos que mais destaque dá à forma, manejando a autora, com rigorosa precisão linguística, o processo da composição e da derivação. Vejamos: “– o pedaço mais arco-íris”, p.11. O semantema nome arco-íris, com função adjetiva, visualiza todas as suas cores, transmitindo-nos esta impressão e também impondo a sua presença por ser, ao mesmo tempo, semantema nome e com função adjetiva. Assim, é a derivação imprópria realizada pela altura. Adjetivações de substantivos: “e nos teus olhos garotos” (p. 11). E esta adjetivação: “berços de noite inocência” (p. 12); “tão eco de Natais inesquecíveis” (p.15); “E pensar que sonhei de alma garota” (p.17); “Essa graça tão flor de quase incrível” (p.19); “Dia mago, barba luz e alvo manto” (p.20); “Dei-lhe uma viola bruxedo” (p.98); “Dá sorrisos cor simpleza” (p.103). A substantivação do verbo: “e irei de encontro ao rir das mesmas vozes” (p.13). O semantema dinâmico –rir- se torna estático, sem tempo, sem aspecto, sem continuidade, retratando uma só realidade não fugaz. A adjetivação do advérbio: “Este Natal a ti, meu sempre motivo de viver e curtir vida” (p.15). Substantivação do adjetivo: “e as sombras desses longes vão de encontro às sombras de meu ido coração” (p.18). Pela falta de expressividade da função adjetiva de –longe- para retratar a sua realidade, a poetisa o transforma em nome (semantema) com função de “coisa”, de algo que pertence ao mundo dos objetos: (os longes). O emprego do substantivo pelo adjetivo: “suspensa em fio mistério” (p. 26). Mistério é nome em função adjetiva. Substantivação do verbo: “do meu mirar” (p.42). É o dinâmico pelo estático. A valorização recai no fato e não na ação de mirar. Ainda: “dos mais elmos floresceres” (p.67). Substantivação do advérbio: “Viola e ganzá num sim” (p. 104). Toda esta criação está perfeitamente dentro das normas linguísticas da língua e do mesmo modo se apresentam os vocábulos criados com apoio na composição. Expressões sintagmáticas são convertidas em novos e expressivos vocábulos, estruturalmente formados, foneticamente constituídos: “às minhas mãos fragi-leves” (p.11); “manhã de sobre-rosados” (p.12); “e soltam riso-pássaros” (p.12); “menina acordarei de olhos-saudade” (p. 12); “E teus olhos-céus, imperceptíveis” (p.14); “alegroandante o meu sonhar ingênuo” (p.16); “um dezembro sofrido, verdiescuros” (p. 18); “e o mago o azul-rei da noite santa”(p.20); “E então nos compôs-céus os nuvenbrancos” (p.20); “com toques-milagres” (p.31); “marujo-esperança” (p.34); “de mar-esperanças” (p.35); “A cabecinha-de-vento” (p.43); “olha de olhos boas-vindas” (p.54); “chegam três vozes desnoras” (p.63); “descerram portas-auroras” (p. 63); “mil-e-uma-noites sonhadas” (p.73); “encenar cristãos-e-mouros” (p.73); “Barro-poesia nas horas” (p.76); “e as luzes de estrelas-guias” (p.77); “rumo às ruas-corações” (p.78); “alegrovivente” (p.78); Três Marias moças-flores” (p.82); “outros Meninos-Messias” (p.85); “boi-bumbada animação” (p.89); “boibumbante oi oi oi oi !” (p. 89); “Moça, é bicho engole-gente” (90); “de cabra e barba-de-bode” (p.90); “pele-de-Ceará nos olhos” (p.92); “indisfarsável-possante” (p.96); “rosa-chá pra xás da Pérsia” (p.97); “sonhos sem-fim indeléveis” (p.97); “alma das noites-segredo” (p.98); “tremeluzentes, e vagos” (p.101); “levam levas vozes-lágrimas” (p. 107), para citar, apenas, as mais expressivas.
Recorre
ao processo da derivação com muito cuidado, utilizando todos os recursos da
prefixação e da sufixação, sempre obedecendo às normas linguísticas: “de
algodoada mansuetude” (p.27); “de reisado – então não sei?” (p.32); “jornadeava.
Então, aos poucos” (p.37); “Jesusinho nos proteja!” (p.85); “Adeus, ex-alegres
bichos, / ex-chicote de Mateus” (p.93).
As sugestivas onomatopeias aliteradas enriquecem este artesanato vocabular: “tiquibum quitibum bum!” (p.72) e “em que viera, lapo lapo” (p. 100).
Na quadra : “E segue empós do Vaqueiro. / Atrás do séquito simples, / seguidores simples mente / seguidos de álacre ritmo” (p.104), encontramos no terceiro verso (“seguidores simples mente”) a bipartição formal do advércio – simplesmente – que nos apresenta duas palavras: - simples – e – mente - , dando ritmo visual ao verso. “Simples” é nome que se refere a – seguidores - , porém, com função adverbial.
Por conseguinte, “Cancioneiro do Natal”, é poesia da mais lírica inspiração e, sobretudo, manancial de rico e inesgotável campo para as pesquisas da microanálise estilística, obra com que a fina sensibilidade de Stella Leonados nos brinda e deleita.
LCSF,
Rio, 2 de maio de 1965, Ano do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro.
ATÉ A PRÓXIMA
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