- MISTÉRIOS -
Realmente
existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o
homem isolado, em solidão. Somos uma espécie social e dependemos do outro. Só
por ficção e na ficção, o homem vive isolado.
Não
vou contrariar, agora, os mais significativos doutores das ciências sociais e
muitos entusiasmados psicólogos das mais avançadas linhas francesas, de viés
psicanalítico, pois deixei os grandes centros em que atuava no meio de
verdadeiras multidões, vivendo em ambientes repletos das mais instigantes e
significativas figuras, que pretensamente interagiam comigo, para vir para o
campo, para juntar-me aos cantos dos pássaros e aos mugidos do bom gado gordo, que
pasta nas relvas dos campos. Mas sinto-me, hoje, como já me sentia outrora,
solitário, muitas vezes. Aposentado, escolhi a paz da cidade do interior,
rodeada de fazendas, com suas imensas voçorocas dentro de íngremes terrenos,
transformados em pastos de poucos bois e muitos cupinzeiros.
Mas
faz parte da vida envelhecer. Não um envelhecer sem propósitos, como estação
terminal de uma breve viagem, mas um envelhecer com um significado robusto que
justifique a alegria de se sentir útil, nem que seja para se lamentar em
missivas tristes, às vezes indecifráveis, sem estilo e, possivelmente, até sem
destinatário. O importante é conviver, interagindo com o próximo de qualquer
forma, pois a solidão é amedrontadora e poucos sabem como lidar com ela.
Às
vezes sozinho, nessas regiões isoladas, ela – a solidão – me inspira e me faz pensar que sou mais forte
do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu
vizinho não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e
presunçosas não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que
embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais
requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades
comezinhas para as compras da venda, refugio-me sempre em meu quarto de
leitura. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante.
É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas
há outra, mais amedrontadora, até doentia. Fujamos dessa. A vida exige
multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e
êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a
multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Vivendo,
aprendi a afastar todo o tormento que nos isola e que nos aprisiona. Mas aprendi,
por outro lado, a viver a talvez gostosa dualidade barroca, que projeta a
alegria de viver em grupo de equivalentes e recrimina o pluralismo,
restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, por pura incompreensão dos
fatos, ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. Mesmo
agora um tanto isolado, procuro sempre alguém para confirmar se estou vivo
mesmo.
Mas
a vida de quem já muito viveu é mesmo misteriosa, quando criadora de situações
dicotômicas. Para que ela seja digna tem de ser entendida e respeitada pelo
outro. Todos nós temos de saber conviver com esse burburinho especial que
alucina, porque encanta, mas que também mata, porque deprime. Saber viver
nesses limites é um mistério e é para poucos. Devemos nos preparar para vivermos
em grandes grupos e também em regiões de pouca densidade demográfica. É bom
experimentar tudo, sem esquecer que a vida exige e reclama por atenção. Mas em
todas as situações, todos nós gostamos de ser úteis. “Só o homem valoriza a utilidade!
”. Li isso num jornalzinho que circulava num asilo para idosos, ao visitar um
parente de meu pai que lá só ficava sentado...
e nunca mais esqueci. Os
mistérios da vida não foram explicados nas escolas regulares, por onde todos
nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os
positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS
possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência.
Esses mistérios, os mistérios da vida, pertencem a um outro sistema simbólico,
não se iludam!
Numa
tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo,
lembrei-me da visita que fiz, há muitos anos, à românica ou muito mais antiga
Catedral da Sé, em Braga. Lá, depois de percorrer os silenciosos corredores de pedras
escuras, com artes de todas as épocas, penduradas nas paredes descascadas, perguntei
ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados,
estavam ainda intactos. Aquele cansado funcionário, já idoso, de aparência
frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava só, num
pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando comigo por
púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente todas aquelas estórias escritas nas
etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior sagrado daquele
templo bracarense, respondeu-me, sentindo-se útil, pela única vez em que eu o
solicitei, que aquilo representava um mistério de Deus. E transformando-se, agora
alegre e feliz, gritava contente, cumprindo sua missão de guia: - “Mistérios de
Deus. Mistérios de Deus! ”
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