Recebi
um vídeo desses que aproveitam o falar deturpado do povo humilde, sem contato
nenhum com a língua culta, que faz o pessoal rir, ao usar essa incrível ferramenta
da moda, implantada em quase todos os celulares, chamada WhatsApp, que na linguagem popular é
facilmente traduzido por Zap-zap. O vídeo
recebido, um desdentado, incentivado por um grupo de desocupados, é filmado,
tentando dizer o que iria almoçar na casa de um amigo, que o convidara para uma
festança. Iria, segundo o pobre coitado, participar de um almoço com o famoso “feijão torpedro”, servido com “esgonofe” de frango e “apicão” com linguiça “vianese” e “estocana afofumada”. As gargalhadas sufocavam o ambiente e o o
nosso personagem ria, repetindo a pedidos, várias vezes, aquela baboseira toda,
que se referia ao cardápio suculento de um feijão tropeiro, com estrogonofe
de frango e salpicão com linguiça vienense e toscana, defumada.
Repassei
esse vídeo para uma ex-aluna, que ficou braba comigo. “Por que as pessoas se deliciam com a ignorância alheia? Seria para
aumentar o próprio valor? É triste!” Então, tentei acalmá-la, dizendo que
ela tinha razão e, para me redimir, tentaria explicar tudo isso, dentro de
minhas limitações, é claro, à luz da ciência da linguagem, que estudo há muitos
anos.
Parece
que hoje em dia as pessoas que desfrutavam de poucas atividades sociais, se
misturaram com outras de maior repertório e conhecimento, por força da disseminação
de tecnologias, e tiveram um aumento significativo de renda, aliado ao acesso incontestável
a inúmeros bens de consumo, chegando mesmo a mudarem de classe social, segundo
as vozes políticas dos “pais dos pobres”,
donos dos partidos que dominam o poder central de nossa nação, atualmente.
No
bojo dessas mudanças, tudo junto e misturado, veio a necessidade de esses
indivíduos nomearem os fatos, todas as coisas e as diversas situações novas,
que passaram a viver e que os envolveu. Novos sinais, novos índices, novos
símbolos, novos signos e novos significantes com modernos significados teriam
de ser usados para a comunicação continuar existindo entre esses incluídos na
nova ordem social sobredeterminante, cujos representantes, disputados como
importantes consumidores e copartícipes de várias outras situações de inclusão
são, hoje, numerosíssimos. Esta situação tão inusitada vai desde a debutância
em ágapes condominiais até as viagens aéreas e a vapor, nos belos e gigantescos
transatlânticos de bandeiras de estranhos paraísos fiscais, encravados no Mar
Mediterrâneo, lá na Europa distante...
Bem,
para que esse admirável mundo novo
chegasse até esses novos cidadãos – e creio que ainda não chegou - , seria
necessário o domínio, por parte deles, do mais importante e significativo fato
social que existe, o idioma, representado pelo código linguístico. É por
ele que nomeamos arbitrariamente as coisas, as qualidades, as ações, as
emoções, as circunstâncias, exprimindo nossos anseios e todos os nossos mais
recônditos desejos.
Por
outro lado, a língua transmitida, aquela que vem do berço e do colo de nossa
mãe, correrá frouxa, dentro de sua deriva, de forma espontânea, nas
comunidades, até ser burilada pelas regras da língua adquirida, aquela que se
aprende à escola. Faltando a escola, o lugar específico e sistemático para sua
transmissão, com método, regras e muita repressão, também, a língua adquirida ficará
à deriva, sem nenhum trocadilho linguístico. Naquele mundo novo, onde o
econômico sobredetermina o social, por imposição de um modo de produção
capitalista, que nos governa a todos, faltando a escola, grande parte dos
valores culturais – e a língua é o maior tesouro guardado nesse baú sagrado –
grande parte dos valores culturais, repetimos, é perdida, ficando o indivíduo
falante sem incorporar o código linguístico da língua culta. Para que não nos
esqueçamos, é sempre importante salientar que, sendo a língua um fato social,
ela irá representar a comunidade, sendo, inegavelmente, o mais importante traço
de cultura de um povo. Já dissera o linguista francês Antoine Meillet que as
línguas são o que delas fazem as sociedades que as empregam, pois a vontade dos
que as falam intervém, contribuindo para o seu destino. Será que isso está
acontecendo agora, com a ascensão dessa nova classe social que fala pela deriva
da língua portuguesa, com a falência da instituição Escola? Pode ser, mas o
mais importante é culturalizar as massas e não massificar a cultura.
No
caso das expressões que causaram horror à minha ex-aluna, como o famigerado “feijão torpedro”; o sofisticado “esgonofe”, prato das elites brancas; o
tradicional “pudim de leite condenado”
e a nossa mineiríssima “linguiça estocana
afofumada”, agora com roupagem estrangeira, são expressões estropiadas de
um falar popular, relacionadas ao espaço social – a periferia desestruturada e
esquecida -, caracterizado pela língua transmitida por ascendentes aos
descendentes nas suas comunicações diárias, entre pessoas de pouca ou nenhuma
cultura, afastando-se profundamente da norma, com flexões bastante
simplificadas, apresentando incrível espontaneidade de realização fonética e um
vocabulário, geralmente imitativo, eivado de expressões afetivas, de
modismos e de gírias, não raro com alguma galhofa, na falta de algo mais
substancial. Desconhecendo a palavra apropriada, o falante apela para a
tradução analítica do pensamento e, assim, se faz ou procura fazer-se entender.
Bom apetite, e não naufraguem com este feijão
torpedro de fim de semana.
ATÉ
A PRÓXIMA
Um comentário:
Oi,Prof!
Obrigada pelo seu comentário.
Também sinto que aos bloggers não são mais tão atraentes para o público em geral, que prefere o Facebook.
Meu Facebook tem apenas 93 amigos e faço
questão de conhecer cada um deles pessoalmente (ou são pessoas super recomendadas) para evitar os aborrecimentos enormes e problemas que o sr, nem imagina que acontecem.....
Continuo a ser LEITORA e gosto de ler LIVROS impressos.
Para meus textos,preciso recorrer a todo tipo de site.Para meu deleite,leio .O que me chegar às mãos ou a sensibilidade.
E sou discípula do Walt Whitman que escrevia,escrevia,escrevia, escrevia,escrevia
sem se importar se alguém estava lendo.
Saudações tricolores!
Abrs
Thereza
Postar um comentário