Quantos me visitaram ?

16 de março de 2015

FEIJÃO TORPEDRO





Recebi um vídeo desses que aproveitam o falar deturpado do povo humilde, sem contato nenhum com a língua culta, que faz o pessoal rir, ao usar essa incrível ferramenta da moda, implantada em quase todos os celulares, chamada  WhatsApp, que na linguagem popular é facilmente traduzido por Zap-zap. O vídeo recebido, um desdentado, incentivado por um grupo de desocupados, é filmado, tentando dizer o que iria almoçar na casa de um amigo, que o convidara para uma festança. Iria, segundo o pobre coitado, participar de um almoço com o famoso “feijão torpedro”, servido com “esgonofe” de frango e “apicão” com linguiça “vianese” e “estocana afofumada”. As gargalhadas sufocavam o ambiente e o o nosso personagem ria, repetindo a pedidos, várias vezes, aquela baboseira toda, que se referia ao cardápio suculento de um feijão tropeiro, com estrogonofe de frango e salpicão com linguiça vienense e toscana, defumada.
Repassei esse vídeo para uma ex-aluna, que ficou braba comigo. “Por que as pessoas se deliciam com a ignorância alheia? Seria para aumentar o próprio valor? É triste!” Então, tentei acalmá-la, dizendo que ela tinha razão e, para me redimir, tentaria explicar tudo isso, dentro de minhas limitações, é claro, à luz da ciência da linguagem, que estudo há muitos anos.
Parece que hoje em dia as pessoas que desfrutavam de poucas atividades sociais, se misturaram com outras de maior repertório e conhecimento, por força da disseminação de tecnologias, e tiveram um aumento significativo de renda, aliado ao acesso incontestável a inúmeros bens de consumo, chegando mesmo a mudarem de classe social, segundo as vozes políticas dos “pais dos pobres”, donos dos partidos que dominam o poder central de nossa nação, atualmente.
No bojo dessas mudanças, tudo junto e misturado, veio a necessidade de esses indivíduos nomearem os fatos, todas as coisas e as diversas situações novas, que passaram a viver e que os envolveu. Novos sinais, novos índices, novos símbolos, novos signos e novos significantes com modernos significados teriam de ser usados para a comunicação continuar existindo entre esses incluídos na nova ordem social sobredeterminante, cujos representantes, disputados como importantes consumidores e copartícipes de várias outras situações de inclusão são, hoje, numerosíssimos. Esta situação tão inusitada vai desde a debutância em ágapes condominiais até as viagens aéreas e a vapor, nos belos e gigantescos transatlânticos de bandeiras de estranhos paraísos fiscais, encravados no Mar Mediterrâneo, lá na Europa distante...
Bem, para que esse admirável mundo novo chegasse até esses novos cidadãos – e creio que ainda não chegou - , seria necessário o domínio, por parte deles, do mais importante e significativo fato social que existe, o idioma, representado pelo código linguístico. É por ele que nomeamos arbitrariamente as coisas, as qualidades, as ações, as emoções, as circunstâncias, exprimindo nossos anseios e todos os nossos mais recônditos desejos.
Por outro lado, a língua transmitida, aquela que vem do berço e do colo de nossa mãe, correrá frouxa, dentro de sua deriva, de forma espontânea, nas comunidades, até ser burilada pelas regras da língua adquirida, aquela que se aprende à escola. Faltando a escola, o lugar específico e sistemático para sua transmissão, com método, regras e muita repressão, também, a língua adquirida ficará à deriva, sem nenhum trocadilho linguístico. Naquele mundo novo, onde o econômico sobredetermina o social, por imposição de um modo de produção capitalista, que nos governa a todos, faltando a escola, grande parte dos valores culturais – e a língua é o maior tesouro guardado nesse baú sagrado – grande parte dos valores culturais, repetimos, é perdida, ficando o indivíduo falante sem incorporar o código linguístico da língua culta. Para que não nos esqueçamos, é sempre importante salientar que, sendo a língua um fato social, ela irá representar a comunidade, sendo, inegavelmente, o mais importante traço de cultura de um povo. Já dissera o linguista francês Antoine Meillet que as línguas são o que delas fazem as sociedades que as empregam, pois a vontade dos que as falam intervém, contribuindo para o seu destino. Será que isso está acontecendo agora, com a ascensão dessa nova classe social que fala pela deriva da língua portuguesa, com a falência da instituição Escola? Pode ser, mas o mais importante é culturalizar as massas e não massificar a cultura.
No caso das expressões que causaram horror à minha ex-aluna, como o famigerado “feijão torpedro”; o sofisticado “esgonofe”, prato das elites brancas; o tradicional “pudim de leite condenado” e a nossa mineiríssima “linguiça estocana afofumada”, agora com roupagem estrangeira, são expressões estropiadas de um falar popular, relacionadas ao espaço social – a periferia desestruturada e esquecida -, caracterizado pela língua transmitida por ascendentes aos descendentes nas suas comunicações diárias, entre pessoas de pouca ou nenhuma cultura, afastando-se profundamente da norma, com flexões bastante simplificadas, apresentando incrível espontaneidade de realização fonética e um vocabulário, geralmente imitativo, eivado de expressões afetivas, de modismos e de gírias, não raro com alguma galhofa, na falta de algo mais substancial. Desconhecendo a palavra apropriada, o falante apela para a tradução analítica do pensamento e, assim, se faz ou procura fazer-se entender. Bom apetite, e não naufraguem com este feijão torpedro de fim de semana.

ATÉ A PRÓXIMA










Um comentário:

THEREZA FISCHER PIRES disse...

Oi,Prof!
Obrigada pelo seu comentário.
Também sinto que aos bloggers não são mais tão atraentes para o público em geral, que prefere o Facebook.
Meu Facebook tem apenas 93 amigos e faço
questão de conhecer cada um deles pessoalmente (ou são pessoas super recomendadas) para evitar os aborrecimentos enormes e problemas que o sr, nem imagina que acontecem.....
Continuo a ser LEITORA e gosto de ler LIVROS impressos.
Para meus textos,preciso recorrer a todo tipo de site.Para meu deleite,leio .O que me chegar às mãos ou a sensibilidade.
E sou discípula do Walt Whitman que escrevia,escrevia,escrevia, escrevia,escrevia
sem se importar se alguém estava lendo.
Saudações tricolores!
Abrs
Thereza

Powered By Blogger

Arquivo do blog

Quem sou eu

Minha foto
Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.