Antônio José Chediak, Antônio Houaiss, Luiz Cesar Saraiva Feijó., após reuniaõ da Academia Brasileira de Filologia, UERJ, Rio de Janeiro |
Homenagear o saudoso filólogo,
Antônio Houaiss (15/10/1915 – 07/03/1999), diplomata de carreira, lexicógrafo,
tradutor, esteta, um homem de cultura humanística completa, que soube entender
o seu tempo histórico e dele participar harmoniosamente, inclusive na vida
pública, como ministro de Estado da Cultura, é um dever de seus pares da
Academia Brasileira de Filologia. Se o
antropólogo Claude Lèvi-Strauss recorreu ao preparo de alimentos, isto é, à
forma de se cozinhar, para estudar os mitos, e principalmente os mitos
indígenas, Antônio Houaiss fez da cozinha o seu passatempo estruturador de
fontes constantes de renovação de muitos pensamentos, já que o homem cozinha
para refletir suas ideias, na materialidade dos ingredientes, e não, somente, para se alimentar. Se o famoso
antropólogo belga trabalhou com os alimentos e com as práticas culinárias como
pano de fundo em seus estudos sobre os mitos indígenas, Antônio Houaisss, de
muitas formas, se utilizou das práticas do “bom gourmet” para pensar sobre a
forma de se organizar o banquete. É claro que seu nome se imortalizou no campo
dos estudos da filologia e da ecdótica. Mas escolhi como tema, para homenagear
essa grande figura de nossa cultura humanística, uma de suas paixões: a
gastronomia. Sempre escrevo, em meu Blog, nas redes sociais, alguma coisa sobre
isso. Vejo, pois tal assunto como uma forma de unir história, filologia e boa
comida. É muito interessante conhecer comidas exóticas. Comidas exóticas, tradicionais e simples que existiam em
Portugal, desde o século XV. É mesmo um assunto que encanta e pode ser
considerado como muito produtivo. A culinária portuguesa é hoje considerada uma
das mais apreciadas no mundo inteiro. Desde a fundação da sua nacionalidade
(1143), Portugal vem acumulando os prazeres gastronômicos, baseados em pratos
que existiam antes do século XII. Contudo, parece que muita coisa se perdeu no
terremoto que destruiu grande parte de Lisboa, em 1755. Talvez tenham se transformado
em cinzas muitos livros de mão, relacionados à culinária. Como nos tempos de
nossas avós, as receitas gastronômicas eram anotadas em folhas de papel e
depois passadas a limpo em cadernos que, guardados com muito cuidado, se
transformavam em preciosos segredos materializados em caldos, assados, massas,
guisados, frituras de todos os tipos e maravilhosos doces capazes de adoçar, supimpamente,
os mais requintados paladares. Todavia, muitos desses segredos culinários estão
ainda guardados a sete chaves em mosteiros portugueses, como, por exemplo, nos
da cidade de Odivelas que produz, ainda, famosos doces em suas casas de oração,
mosteiros seculares e meditativos. Em outras inúmeras casas de oração, como os conventos
portugueses, e cito o Convento de Arouca, o Convento de Santa Clara de
Guimarães, o de S. Domingos de Elvas, o Convento da Senhora da Conceição de
Lagos, o Convento de S. João de Ponta Delgada, nos Açores, o de Sant’ Ana de
Coimbra, onde existem, ainda, receitas guardadas em segredo. Receitas que se
servem, generosamente, de inúmeros ingredientes interessantes, como, por
exemplo, a água de flor de laranjeira, hoje quase em desuso, e muitas outras
preciosidades importantes para um exigente apreciador da “haute coisine”. Contudo, muitas dessas iguarias, e seus segredos não
resistiram aos cochichos das cozinheiras e as receitas vazaram, chegando ao
conhecimento do grande público. Assim, as fórmulas dessas especialidades se
transformaram em clássicos, hoje conhecidos, da doçaria sazonal, como a
aletria, o pão de ló, além do vetusto e muito apreciado arroz-doce, cuja origem,
possivelmente, remete aos mouros, que habitaram o território português, antes
da reconquista.
Em Portugal, nos tempos medievais, o
povo consumia, basicamente, carnes, peixes, vinhos e cereais, entre eles o
trigo, o milho, o centeio, em suas principais refeições.
Como sabemos a nacionalidade
portuguesa, fundada por D. Afonso Henriques, data do século XII. Portanto,
vamos destacar, aqui, nesta homenagem singela a Antônio Houaiss e aos
apreciadores da boa e farta mesa, algo que foi escrito 300 anos depois da
fundação do Condado Portucalense, que se notificou por suas gloriosas histórias
de lágrimas, sangue e amor e, por que não dizer, também, por muita banha,
carnes e aves assadas, inúmeros tipos de bolinhos e muitas massas crocantes.
Trata-se de uma especiaria; Pastéis de
carne. Sua receita, e a de inúmeros outros pratos da época, isto é, o modo
de prepará-los encontra-se em um documento histórico de 600 anos. Trata-se de
um texto medieval, retirado da obra editada pelo Instituto Nacional do Livro,
MEC, 1963, intitulado UM TRATADO DA COZINHA PORTUGUESA DO SÉCULO XV, cuja
edição foi preparada pelo professor Antônio Gomes Filho. Vamos transcrever a
leitura diplomática moderna, somente desse primeiro quitute:
PASTÉIS DE CARNE
Tomem carneiro, alcatra, ou lombo de
porco fresco, e uma fatia de toucinho de fumeiro, para dar gosto.
Piquem tudo muito bem. Com cravo,
açafrão, pimenta, gengibre, coentro seco, caldo de limão ou de agraço, e com
uma colher de manteiga faz-se o refogado, ao qual se deitam a carne e o
toucinho picados. Cozinha-se em fogo brando.
Depois de pronto deixa-se esfriar e fazem-se
os pastéis, bem recheados; pincele-os com gema de ovo e leve-os a assar em
forno quente.
Do mesmo modo se fazem os pastéis de galinha.
Os pastéis ficarão mais gostosos, se recheados
com carne crua.
Esse e muitos outros pergaminhos medievais sobre
a culinária do século XV, que envolvem temas diferentes, literários e não
literários foram estudados, à luz da ecdótica,
por especialistas, como Antônio Gomes Filho, Padre Augusto Magne, A. G. Cunha,
Emanuel Pereira Filho, entre tantos outros doutos filólogos brasileiros, muitos
deles pertencentes aos quadros da nossa Academia Brasileira de Filologia, e
apresentam leituras diplomáticas e modernas, num minucioso trabalho de crítica
textual. Um tratado da Cozinha Portuguesa
do Século XV chegou até nós, mostrando-nos a vida de então, pulsando nas
cozinhas dos castelos, mosteiros, vilas, casas simples, nos campos, nas
fazendas e em muitos sítios daquela época quinhentista. Assim, podemos refletir
sobre os momentos de pompa e requinte, mas também sobre os momentos de aflição
e de angústia, talvez diante de tempos, quem sabe, de terríveis dificuldades e escassez
de alimentos. Tempos, muitas vezes, vividos por gente igual a nós, com os
mesmos anseios, tentando encontrar na cozinha a satisfação da degustação, como
supremo encantamento da vida. Pode-se acreditar que procuravam a todo instante,
entre temperos, caldos, pastas e água fervente, articular o pensamento,
cozinhando não somente para saciar a fome, mas, para, sobretudo, articular o
pensamento. Este pedaço de manuscrito é fantástico porque interessante material
filológico, como, por exemplo, os termos "albarada" e "sartãa"
ou "sertãa", que equivalem
hoje a saco-de-confeitar (aqueles com
bicos para decorar bolos) e frigideira, respectivamente. Muitos outros termos,
já pertencentes ao vocabulário passivo da nossa língua, em quase completo
desuso, lá aparecem, deixando registrado um momento da vida do homem
ibérico-peninsular, ao se relacionar com o complexo exercício da culinária. Mostra,
ainda, a vida girando em torno do forno e do fogão, chegando a nós através dos escribas
e seus grafismos, que mais parecem rabiscos em caracteres arábicos ou
garranchos feitos por iniciantes na alfabetização, tentando conseguir escrever.
Finalmente, recolhemos alguns termos
encontrados nesse interessante livro, que trada da cozinha portuguesa do século
XV, cujo tema está totalmente ligado a uma das paixões explícitas de Antônio
Houaiss, para, numa rápida análise, mostrarmos alguns aspectos de nossa língua,
em seu viés diacrônico. Destacamos os seguintes: a) escalfado, esquentado. Part. do verbo latino excalfacere, esquentar; b) albardado,
coberto com ovos batidos e depois fritado. Part. do verbo albardar, do ár. al-‘ bardaHa; c) alfitete, massa de farinha com açúcar, ovos, manteiga ou
toucinho e vinho, disposta em camadas, sobre as quais se coloca galinha,
carneiro etc.; pastelão, queijada. Do ár. al
+ fitat, bocadinho, migalha; d) almojávena,
espécie de bolo ou torta feita com farinha, ovos, açúcar e queijo. Do ár. al-mujabanâ, uma espécie de bolo; e) diacidrão, doce da casca da cidra em
compota. Pref. di(a) + cidrão, do lat. cítrea, ae, limoeiro; f) almíscar, substância de odor penetrante
e persistente obtida a partir de uma bolsa situada no abdome do almiscareiro
macho e usado como fixador em perfumes. Também uma das várias substâncias de
odor forte obtida a partir de animais como o boi-almiscarado e a civeta
(gato-de-algália ou civeta africana), do ár. al-misk, proveniente do persa musk,
testículo; g) codorno (ô), certa
variedade de maçã grande e de pera, de origem obscura; h) alféola, massa de açúcar ou melaço, em ponto grosso, tornada branca
por manipulação e usada em confeitarias, do ár. al-halaua ou al-halua’,
um doce açucarado; i) farte ou farto, variedade de doce em que entram
amêndoa, e açúcar, regressivo do verbo latino farcio, is, arsi, artum, cire, encher,
atulhar, embuchar, engordar, relacionado ao campo semântico da cozinha; j) fartalejo (ê), massa ou espécie de
polenta em que entram farinha e queijo, sua origem, talvez, possa se prender a farte + suf ejo
, por influência de artelete; k) sovar (pão sovado, massa sovada),
misturar bem a massa do pão. O interessante desse vocábulo que ainda pertence
ao vocabulário ativo da língua geral é o sema violência presente nos verbos que
poderiam ter dado origem ao vocábulo português. Mas sua origem é controvertida.
Corominas diz que o vocábulo comum ao português e ao espanhol (sobar) é de origem incerta, talvez
vulgar, a forma verbal subagere, que
suplantou a forma verbal latina culta subigo,
is, egi, actum, igere, meter de
baixo, amansar, subjugar, domar, amansar, apertar, moer, triturar. No caso
citado por Corominas, é claro o sema violência. Nascentes diz que a origem pode
estar na forma verbal latina hipotética *subagere
por subigere (Cf. Corominas), calcado
no part. pass. subactum. M. Lübke
entende que sovar e sobar remontam a um primeiro tipo sobas = súbagis, súbagit. Já Cortesão deriva a forma portuguesa do
espanhol. Mas em todos os casos o sema violência está presente, o que sustenta
significativamente todas as hipóteses etimológicas vistas acima; l) biscoito, vocábulo pertencente ao
vocabulário ativo da língua geral, é um alimento feito de farinha de trigo,
maisena, araruta, polvilho, fubá, etc, misturado a água ou ao leite, com sal ou
açúcar, podendo-se acrescentar ovos, fermento, manteiga, outros tipos de
gordura e especiarias, castanhas, frutas secas, queijo ralado, chocolate etc ,
tudo assado no forno. Nascentes deriva do lat. biscoctu, cozido duas vezes; m) maçapão, vocábulo que no século XIV
significava o conteúdo de uma caixinha onde havia um bolo de açúcar, amêndoas e
água de rosas. Hoje significa bolo de farinha de trigo com amêndoas e açúcar.
A. Coelho deriva de massa e pão e grafa com ss. Gonçalves Viana grafa com ç
e manda comparar com o esp. Mazápan, com z,
equivalente a ç em português. M.
Lübke prende a forma napolitana marzapane
ao árabe mauthaban, moeda com uma
figura de Cristo sentado, que circulava no Levante ao tempo das Cruzadas; n) pão de ló, bolo simples e leve feito de
farinha, ovos, açúcar e água. Nascentes, citando G. Viana, diz que este declara
a locução de origem obscura. Deonísio da Silva concorda com a controversa
origem da expressão, mas sugere uma origem algo interessante e possível.
Relaciona ló com o hebraico Lot, que significa véu. Cobria-se o pão
açucarado com véu para que as moscas nele não pousassem.
BIBLIOGRAFIA
1- COROMINAS, J. Diccionario Crítico
Etimológico de la Lengua Castellana, 4 vol., Madri, Editorial Gredos, 1954.
2- CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário
Etimológico. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2 ed, 1986.
3- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Curitiba, Ed. Positivo, 5. Ed, 2010.
4- GOMES FILHO, Antônio. Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Século XV,
(preparação), Instituto Nacional do Livro, MEC, Rio de Janeiro, 1963.
5- NASCENTES, Antenor. Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa. Edição do autor, Rio de Janeiro, Segunda
Tiragem do Tomo I, 1955.
6- SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário
Latino-Português. Belo Horizonte, Livraria Garnier, 2006.
Este texto sairá publicado na Revista da Academia Brasileira de Filologia, 2017.
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