-I-
É muito bom andar pelo planalto catarinense, visitando as
cidades de seu entorno. São várias. A maior é Lages e creio que a menor seja
Ponte Alta, às margens da BR 116, a 16 km de Corrêa Pinto. Por aquelas bandas
já estive com meu amigo fantasma. Lembro-me bem que ele se apaixonara
perdidamente por uma alma penada que vagava por um casarão abandonado, ao lado
de um posto de gasolina... Registrei em uma crônica do passado. Pois é, a
pequenina cidade não mudou nada, desde aquela época. Voltara agora lá, para comprar
uma abóbora redonda, própria para assar com os camarões, que eu trouxe do
Mercado Público de Florianópolis. Seria a minha contribuição para a festinha,
no sítio de um amigo, em São José do Cerrito, bem perto de Ponte Alta, que é
considerada, por sua grande produção, a Capital Estadual da Moranga. Tudo
conspirava para que as coisas saíssem o mais certo possível, quando o meu amigo
fantasma me veio com essa. Porque eu tinha porque tinha de viajar com ele
naquela hora para muito longe dali, pois tinha algo que me mostrar em outros
sítios muito distantes e que era de meu interesse, e sabia que era coisa que eu
estava querendo ver e saber há muito tempo, e já estávamos atrasados, eu tinha
de sair daquela região o mais rápido possível... Não parava mais de falar!
Tomei um baita susto. Argumentei que deixaríamos para depois da festinha de meu
amigo catarinense; ficaria a viagem inesperada para o dia seguinte, pois tinha
me comprometido com o grupo de levar um quitute e tudo mais. Responsabilidade é
responsabilidade! Mas meu amigo estava irredutível. Queria me levar para outro
lugar, alegando que eu não me arrependeria e não havia tempo a perder.
Argumentei, então, com ar professoral, que o tempo dele, que vivia na
eternidade, era diferente do meu, pobre mortal. Nós aqui na Terra estamos
envolvidos por um sistema de significação diferente do dele. Nosso sistema de
vida está na linha da sucessão contínua dos acontecimentos, uns depois dos
outros e assim vai. Ele tinha de entender que o sistema simbólico dos mortais
não é compatível com o dos santos e muito menos com o dos fantasmas. Quando
alguma coisa interfere, dizemos que aconteceu um milagre. Disse-lhe que nem
sabia por que convivia com aquele estado atípico de relacionamento, com gente
do outro mundo, com uma outra ordenação das coisas. Aí meu amigo se zangou. Não
sou gente. Sou fantasma, e seu amigo! Espargiu uma nuvem branquinha e apitou
como se fosse uma Maria Fumaça derrapando nos trilhos, querendo subir a serra e
sumiu. Parece é que desceu para o litoral ou, quem sabe, se recolheu para
meditar sobre o que havia escutado de mim, a respeito de nossa existência no
real. Voltei ao hotel com a minha abóbora. Em cima da cama havia um bilhete
úmido. Estava escrito: Fui para o Rio de Janeiro.
- II -
Como meu amigo fantasma, numa pirraça de criança mal-educada,
havia me deixado no planalto central de Santa Catarina, com uma abóbora na mão
e, encima da cama do hotel onde me hospedara, um seco, ou melhor, um úmido
bilhete, dizendo que tinha ida para o Rio de Janeiro, respirei fundo e segui
para aquela festinha lá, em São José do Cerrito, bem perto de Ponte Alta, a tal
capital das abóboras. Estava tudo muito bom. Todos apreciaram o meu prato de
camarão, mas me retirei cedo, pois meu amigo fantasma tinha me tirado do sério.
Acho que o pessoal percebeu que havia alguma coisa comigo. Bem, ele me dissera
que havia descoberto algo de meu interesse e partira para o Rio de Janeiro, onde,
talvez me esperasse para voltarmos a conversar. Não titubeei, no dia seguinte
já estava pousando no Aeroporto internacional Antônio Carlos Jobim, o Galeão,
na ilha de mesmo nome, dentro da Baía da Guanabara. Então foi só esperar pelo
seu aparecimento. O Rio pegava fogo e olha que estávamos no início do
outono. Assim, nada melhor para se refrescar do que um gostoso banho de mar. À
noite fiquei num barzinho honesto e distinto, com uma variedade enorme de batidas, que
caíram muito bem com os tira-gostos e músicas do repertório impecável de
Martinho da Vila, que mesmo sem estar presente animou aquelas horas de sadio
lazer e meditação. Sim. O que seria que meu amigo do outro mundo queria me
mostra? Acordei no dia seguinte sem nenhuma dor de cabeça, mas fiquei me remoendo
por dentro, preocupado com o que aquela assombração portuguesa iria me
aprontar. Ele não apareceu. Passaram-se três dias e três noites... Fui a uma lavanderia deixar minhas poucas peças de
roupa para poder usá-las limpas e cheirosas. Pronto, lá dentro, no meio de alguns
alvos lençóis, estendidos num varal, destinado a secar a roupa de cama de uma
pousada das redondezas, apareceu a margarida! - Vim atrás de você e já estou aqui
na Cidade Maravilhosa há quatro dias. Disse-lhe sério, esperando sua reação. - “Antes
de ir para Santa Catarina passei por alguns segundos no século XIX, lá perto de
minha casa, em Braga, e soube que um antepassado seu, aliás um parente ou
melhor, um já desencarnado ser, que viria a ser seu bisavô estava pronto para se casar”. Confesso que se não soubesse que estava me relacionando com um
fantasma, uma criatura que vivia num espaço-tempo diferente do nosso, jamais daria
atenção àquelas estranhas palavras. Meu amigo passava do meu presente para o
passado de meus antepassados, num sacolejar de fumaça ou num estalar de dedos se os tivesse rígidos. Seu tempo dependia do espaço em que construía sua
presença com os mortais. Talvez consiga explicar melhor. Comigo, em Santa
Catarina, no planalto onde há alguns dias estava, em São José do Cerrito, na
tal festa de um amigo, ele conseguia entender tudo que tinha se passado nos arredores daqueles
sítios, desde a eternidade, ou melhor, desde sempre. Confuso, não? Mas é isso
mesmo. Veja, quando estive com essa criatura lá nas regiões minhotas, em
Portugal, ele também conseguira saber de tudo que lá acontecera, desde sempre comigo e com todos, ali, naqueles espaços. Sabia de tudo que acontecera com meus
parentes do passado, responsáveis pela minha existência no futuro. Parece que deu
para entender. Pois bem, agora, no Rio de Janeiro ele está sabendo de muito
mais coisas sobre mim. Foi logo botando para fora. -"Sua gente passou por aqui,
desembarcando no Cais Faroux, em 1887. Seu bisavô, sua bisavó e sua avó, um
neném magrinho. Tinha dois aninhos". Sabem para onde foram, perguntei muito
espantado. – “Para as serras! Para as serras! Vamos para lá também”!
ATÉ A PRÓXIMA
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