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22 de março de 2007

A MORTE DAS ARAUCÁRIAS

No mês de fevereiro deste ano de 2007, estive novamente visitando a região da Serra Catarinense, mais precisamente, estive em Lages e nas cidades vizinhas. Admiro aqueles sítios e seu povo. A região serrana me impressiona por sua beleza e por um toque de magia, nunca identificado com exatidão. Pensava sempre que era algo atávico, pois meus pais nasceram no interior. Sempre me esforçava muito para conseguir desvendar o que sentia, quando lá chegava. Viajando pela diversificada região catarinense, sou um mero turista, encantado por sua beleza. Mas quais? São tantas! Não sei, precisamente. Seriam os ares amenos? O frio gostoso e gelado do inverno? O colorido dos campos plantados, celeiros da fartura? Seriam as matas de araucárias? Sim, é isso! Como são majestosas! Imponentes na sua verdejante verticalidade, abrindo os braços aos pássaros e derrotando, com seu pinhão, a fome do caboclo. Mas fico muito deprimido, constatando que poucas árvores sobraram, fruto de uma dendoclastia irresponsável e criminosa, mesmo. Pois é! Creio que é isso. Imagino como tudo aquilo foi um dia deslumbrante, maravilhoso e belo. E o que vejo são restos de uma beleza quase que totalmente destruída. A devastação dessas florestas sempre me atormentou. Deve ter sido um duro golpe naquela paisagem paradisíaca da serra. Tudo isso eu sentia, mas não atinava com as conseqüências imediatas do grande desastre da devastação. Mesmo assim, ainda sobrou ao alumbramento do viajante a visão balsâmica de muitas paisagens de matas nativas de pinheiros, por toda a Serra Catarinense. Politica e juridicamente, nunca procurei investigar o que aconteceu. Mas, hoje a coisa mudou, pois creio que encontrei a resposta. Não na Geografia Humana; não na História da Economia Agrária; não nos Alfarrábios nem nas Certidões dos Cartórios. Muito menos nos processos empoeirados dos Foros, nem nas Juntas Comerciais das Comarcas, que registram o progresso e o retrocesso, esse, materializado, quase sempre, em contratos esdrúxulos, precipitando a morte das silentes araucárias. Encontrei o que procurava na Literatura, nos textos literários que deixaram de freqüentar as escolas. É o que sempre digo! A verdade histórica não está nos livros didáticos. Meu Deus! Como eles mentem! Ela está no sentimento, na poesia, na maneira de se transfigurar o real, com arte, amor e devoção, fundando um novo significado, uma nova realidade, um novo discurso, sempre a ser desconstruído. Vejam o caso da descoberta da lendária cidade de Tróia. Heinrich Schliemann somente a identificou, depois de ler e seguir os vestígios ciclópicos localizados na Ilíada e na Odisséia de Homero. Pois bem! Foi lendo sobre a obra do escritor catarinense Guido Wilmar Sassi (1922-2003), texto elaborado por Enéas Athanázio, que encontrei as vozes do grande drama que ocorrera nos campos das esguias araucárias, onde o padecimento e o desespero de todos os serranos surgiram com a devastação desse tipo de pinheiro. Muitas histórias de sofrimento e dor serviram de mote às sagas captadas pela sensibilidade do escritor lageano. Algo tão devastador só poderia ter sido observado, registrado e mostrado, pela sensibilidade do poeta, para ser definitivamente entendido e não pela frígida mão do historiador, que registra os acontecimentos, talvez, para que, um dia, seja tudo esquecido... A voz do poeta, por ser transgressora, causa impacto e propicia profundas reflexões.
Leiam, agora, o excelente texto de Enéas Athanázio, sobre Guido Wilmar Sassi e sua obra.

TAMANHO NÃO É DOCUMENTO
Enéas Athanázio

"Guido Wilmar Sassi (1922/2003) tem sido lembrado com mais freqüência depois de falecido que durante a vida. Vestibulares recentes têm destacado sua obra nas questões formuladas aos candidatos, divulgando seu nome e propiciando a procura de seus livros. Isso é justo e merecido porque ele foi um dos maiores escritores catarinenses do Século XX e seu trabalho obteve repercussão junto a críticos brasileiros de prestígio e leitores em geral, merecendo publicação em Angola e tradução ao alemão para edição em antologia na Alemanha. Durante a vida, porém, foi quase sempre esquecido, fato para o qual parece ter contribuído seu afastamento voluntário dos meios literários durante longos anos. Fixando residência no Rio, seu contato com colegas catarinenses se tornou algo difuso. Dono de temperamento forte, nunca foi homem de meias palavras e não cultivava a política literária tão freqüente entre os homens de letras.Embora nascido em Lages, passou a infância e a juventude em Campos Novos, cidade de cujo clima se impregnou e que teria presença forte em sua ficção. O estilo da vida campeira, os usos e costumes do homem do campo, suas crenças e princípios morais, alimentação, vestuário, linguajar típico, a vegetação e a paisagem marcaram fundo as memórias do rapaz e depois transpareceram em seus contos. A exploração desenfreada do pinheiro e das madeiras de lei sem o menor respeito pelo ambiente tocou a sensibilidade do jovem que tudo observava com olhar agudo e que usaria essa experiência como tema de sua obra. A árvore valiosa que atiçava a ganância de aventureiros travestidos em "industriais" perdia a guerra em todos os fronts. Punham abaixo um pinheiro centenário com doze ou quinze metros de altura para extrair uma única tora de cinco ou seis metros; o restante permanecia ao abandono, em pleno campo, sem qualquer preocupação com o desperdício, como restos de alguma carcaça. Enquanto os tribunais discutiam os requisitos da propriedade de árvores destinadas ao corte sobre imóveis de terceiros, situação das mais comuns, e nunca chegavam a um entendimento, elas caíam aos milhares, talvez milhões, em toda a região. O lucro, canalizado para outras cidades, regiões ou Estados, escapava entre os dedos, sem nada deixar, exceto montes de serragem que queimavam por anos a fio e aleijados de serrarias, presentes com espantosa freqüência. Tudo isso, com o esmero do artífice, Guido soube colocar em seus contos sem intenção folhetinesca mas como registro de um período melancólico da sofrida história de nosso Planalto. Em raras ocasiões o pinheiro dava o troco e infligia uma vingança. Nem sempre a vítima escolhida era culpada e o santo acabava pagando pelo pecador. Por tudo isso, Guido foi considerado pela crítica como o iniciador do ciclo do pinheiro na literatura nacional. Comentando esse tópico, em 1958, o celebrado crítico e poeta José Paulo Paes escreveu que o ficcionista catarinense inaugurava em nossas letras o ciclo do pinheiro com seus contos e romances (*). No panorama do regionalismo, Guido foi o segundo expoente, em ordem cronológica, despontando depois de Tito Carvalho, o fundador da corrente, após longo hiato. Cada um, porém, guardava suas características pessoais e enquanto o primeiro dava ênfase à linguagem local, Guido se preocupava mais com os aspectos sociológicos, ainda que diluídos na ficção.Em Florianópolis, para onde se transferiu, teve ativa participação no Grupo Sul, defensor da renovação nas artes e nas letras do Estado, ainda que tardia em relação ao restante do país. Embora escrevesse desde cedo, Guido surgiu para as letras com a publicação de um de seus contos na célebre "Revista do Globo", de Porto Alegre, em 1949. Incentivado pelos integrantes do Grupo, deu a público os livros "Piá" e "Amigo Velho", ambos antologias de contos. Este último recebeu o prêmio Arthur Azevedo, do Instituto Nacional do Livro. Publicou ainda os romances "São Miguel", também merecedor de premiação nacional, "Geração do Deserto", adaptado para o cinema por Sylvio Back, e "Testemunha do Tempo", incursão na ficção científica. Participou em diversas antologias importantes, nacionais e estrangeiras, e mereceu aplausos de analistas como Paulo Rónai, Edgard Cavalheiro, Carlos Jorge Appel e Hélio Pólvora, entre tantos outros. Este último, em síntese feliz, asseverou: "Amigo Velho" é uma denúncia, da mesma forma que o são os romances nordestinos, as histórias sobre os seringueiros, os relatos sobre os peões do oeste, as histórias sobre o cacau. O contista catarinense transcendeu os limites do regionalismo puro e só; conhecedor da fórmula de Victor Hugo, uniu o grotesco ao sublime - e a denúncia virou obra de arte de caráter universal" (**). Em poucas palavras, o saudoso crítico faz duas revelações: a familiaridade de Guido com os clássicos e a possibilidade da universalização da literatura regional, tantas vezes posta em dúvida. "São Miguel" constitui um documento emblemático da exploração do pinheiro no Oeste, a par da exploração do próprio homem, e as histórias e lendas que cercavam o transporte da madeira nas famosas balsas que desciam pelo rio até a Argentina. Guido Wilmar Sassi foi dos poucos autores catarinenses do século passado a obter renome nacional.Em recentes vestibulares, Guido foi lembrado através de seu livro "Amigo Velho", cujo conto-título é justamente o que marcou a estréia do autor, fato que me conduziu a uma vagarosa releitura. A primeira edição é de 1957 (Edições Sul) e a segunda de 1981 (Editora Movimento). Foi desta última que recebi um exemplar, com gentil dedicatória do autor, e que guardo com carinho. O volume reúne sete contos, em apenas 70 páginas, confirmando o velho dito popular de que tamanho não é documento. Quase todos se relacionam com o pinheiro, sua exploração e a vida que transcorre em torno dele, nas vilas formadas pelas serrarias, nas cidades próximas e nos campos em derredor, cujo modus vivendi sofre abruptas alterações em face da chegada de estranhos, conduzindo maquinário, introduzindo hábitos e até linguajar diferentes, além de produzirem modificações profundas e rápidas no meio ambiente e na sociedade até então estabilizada nas lidas da agropecuária. Creio que sua leitura permitirá ao leitor imaginar com mais precisão a realidade daquele período que através de livros de história tradicional.Todos os contos são "pesados", para utilizar a divisão proposta por Monteiro Lobato, diferenciando-os dos "leves." Não chegam, porém, ao dramalhão. O drama, quando acontece, está mais nos fatos narrados que nas palavras usadas. A linguagem é sempre cristalina. Em "Amigo Velho", João Onofre padece todas as penas diante do corte de seu pinheiro de estimação, o amigo velho, cujas tábuas acabam servindo para a confecção da cruz que marcava sua sepultura. "Cerração" é o relato do transporte das tábuas de pinho até o porto de Itajaí. Velhos caminhões de reboque, carregados com cinqüenta dúzias de tábuas, vencendo com esforço as quebradas e lançantes de uma estrada "tão desgraçada que não tinha um só trecho que prestasse..." E na qual, em dia de cerração braba, o infeliz motorista Procópio morreu como tantos e tantos outros naquele serviço infernal. "Uma história dos outros" desvenda o crime horroroso que abalou "a pacata e hospitaleira cidade" onde cenas de sangue rareavam ou só aconteciam em entreveros de homens valentes, nunca de forma tão cruel. As reações das pessoas e o choque provocado na pequena comunidade são captados com perfeição, não faltando sequer algum sensacionalismo jornalístico. "Noite" é um caso raro em que o pinheiro vence, aplicando severa peça nos personagens, ainda que não me pareçam ser as vítimas certas. Tem um final pungente, escancarando a solidão e o abandono do pobre que vive na vastidão campeira. A pequenez do ser humano fica ainda mais visível porque não tem ninguém, absolutamente ninguém, a quem recorrer. "Prece de criança" é o mais suave de todos, uma história repleta de carinho e ternura. "Serragem" é um relato curioso. Tem como personagem central um daqueles montes que as serrarias deixavam como herança - a serragem - restos imprestáveis da madeira que passava pela serra. Esses montes, às vezes gigantescos, escondiam mil histórias e mistérios, amores clandestinos, acidentes horríveis e até crimes. Mesmo crescendo, não perdiam nunca o som balofo de terra oca com a "cor de coco ralado, mas sem a alvura deste." Contava-se que em Cerro Negro um desses montes de serragem queimou durante trinta anos ininterruptos. Nas chuvaradas o fogo se escondia, ardia nas profundezas, devorando por baixo, para voltar com tudo logo que o sol tornasse a raiar. "Vagão", por fim, serviu de excelente pretexto para rememorar a técnica dos carregadores de tábuas nos vagões da ferrovia (batedores de tábuas). Alguns operários se tornavam especialistas, carregavam em tempo recorde, tábua sobre tábua, pilha sobre pilha, não deixando diferença de milímetros nas beiradas e nos cabeços. Verdadeiros artistas, cada carga levava suas marcas, reconhecíveis como assinaturas. Os moradores distinguiam à distância quem estava na carregação pela freqüência do ruído das tábuas que caíam no monte. E, no entanto, enquanto carregava tanta madeira de qualidade, tábuas de primeira, vivia num rancho construído de costaneiras, refugos esburacados de nós, onde o vento gelado penetrava sem piedade, incomodando a criança. Todo o mundo madeireiro pulsando nesses contos que se entrosam e formam um painel impressionante. Até os nomes dos personagens eram recorrentes na região: Procópio, João Onofre, Anísio, Genésio, Bernardino... Retrato veraz e humano de um período econômico que passou, enriqueceu a muitos e empobreceu a região. Nada deixou, nem sequer saudade."Amigo Velho" e "Noite" são, para mim, obras-primas. Estão entre os melhores contos produzidos em nosso Estado.Como escreveu o crítico Paulo Rónai, "Guido Wilmar Sassi realiza obra de arte de alto valor." Ela permite um mergulho de corpo inteiro nas campanhas de nosso Planalto, convivendo com sua gente e as coisas da terra. Decorridos tantos anos, não surgiu outro Guido que o igualasse em técnica e inspiração. O ciclo da erva-mate, também rico em vivências, ainda não encontrou seu cronista. Está à espera de alguém que o fixe nas letras como fez Guido com o pinheiro. Mas o tempo passa e isso não acontece. Tudo aquilo se perderá no esquecimento"?


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(*) "Maravilhas do Conto Brasileiro Moderno", S. Paulo, Editora Cultrix, 1958, pág. 256.
(**) Orelhas de "Amigo Velho", segunda edição, P. Alegre, Editora Movimento, 1981.

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.