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30 de março de 2020

MISTÉRIOS DE DEUS (2)




Realmente existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado, em solidão. Somos uma espécie social e dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado.
Não vou contrariar, agora, os mais significativos doutores das ciências sociais e muitos entusiasmados psicólogos das mais avançadas linhas francesas, de viés psicanalítico, pois deixei os grandes centros em que atuava no meio de verdadeiras multidões, vivendo em ambientes repletos das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagiam comigo, para vir para o campo, para juntar-me aos cantos dos pássaros e aos mugidos do bom e sadio gado gordo, que pasta nas relvas dos campos. Mas sinto-me, hoje, como já me sentia outrora, solitário, muitas vezes. Aposentado, escolhi a paz da cidade do interior, rodeada de fazendas, com suas imensas voçorocas dentro de íngremes terrenos, transformados em pastos de poucos animais e muitos cupinzeiros.
Mas faz parte da vida envelhecer. Não um envelhecer sem propósitos, como estação terminal de uma breve viagem, mas um envelhecer com um significado robusto que justifique a alegria de se sentir útil, nem que seja para se lamentar em missivas tristes, às vezes indecifráveis, sem estilo e, possivelmente, até sem destinatário. O importante é conviver, interagindo com o próximo de qualquer forma, pois a solidão é amedrontadora e poucos sabem como lidar com ela.
Contudo, às vezes sozinho, nessas regiões isoladas, ela – a solidão – me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho de apartamento não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas, que mal sabem conjugar um verbo irregular de sua língua natal, não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras da venda, refugio-me sempre em meu quarto de leitura. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante muitos textos de transgressão a todas as normas possíveis e imagináveis, além de me deliciar, o que é maravilhoso, narcisicamente com isso. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas há outra, mais amedrontadora, até doentia. Fujamos dela. A vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Vivendo, aprendi a afastar todo o tormento que nos isola e que nos aprisiona. Mas aprendi, por outro lado, a viver a talvez gostosa dualidade pós-barroca, que projeta a alegria de viver em grupo de equivalentes e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, por pura incompreensão dos fatos, ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. Mesmo agora um tanto isolado, procuro sempre alguém para confirmar se estou vivo mesmo. Por isso escrevo, na ânsia de conseguir uma publicação futura e ser, pelo menos, lembrado. Eis, novamente Narciso enfrentando Tânatos...
Mas a vida de quem já muito viveu é mesmo misteriosa, quando criadora de situações dicotômicas. Para que ela seja digna tem de ser entendida e respeitada pelo outro. Todos nós temos de saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta, mas que também mata, porque deprime. Saber viver nesses limites é um mistério e é para poucos a sua compreensão. Preparamo-nos para viver em grandes grupos e, agora, temos de sobreviver em regiões de pouca densidade demográfica. Isso é desafiador! Mas é bom experimentar tudo, sem esquecer que a vida exige e reclama por muita atenção, pois somos o que o outro deseja que sejamos. Mas em quaisquer situações, adoramos ser úteis, pois “só o homem valoriza a utilidade.” Li isso num jornalzinho que circulava num asilo para idosos, ao visitar um parente de meu pai, um tal de Fernando, pessoa incrível, que lá, sozinho, ficava sentado o dia todo, fitando abstratamente o infinito... Nunca mais esqueci.
Os mistérios da vida não foram explicados nas escolas regulares, por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios, os mistérios da vida, pertencem a um outro sistema simbólico, não se iludam!
Numa tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, lembrei-me da visita que fiz, há muitos anos, à românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga. Lá, depois de percorrer os silenciosos corredores de pedras escuras, com artes de todas as épocas, penduradas nas paredes descascadas, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele cansado funcionário, já idoso, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava só, num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando comigo por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente, de cor, todas aquelas estórias escritas resumidamente nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior sagrado daquele templo bracarense, respondeu-me, sentindo-se realmente útil, verbalizando o seu pensamento interior, na única vez em que solicitei dele uma opinião própria – disse-me a triste figura macilenta- , que aquilo representava um mistério de Deus. E transformando-se, alegre, feliz e catártico, em comoção intensa, gritou contente, cumprindo sua missão de guia: - “Mistérios de Deus! Mistérios de Deus!”
E naquela tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, voltei para o meu recolhimento, pensando que poderia me libertar daquela imensa solidão gótico-românica, condenada à acédia melancólica, que nos envolvera. Era como dizia o poeta mais carioca do que paulista: “tristeza não tem fim, felicidade, sim...

ATÉ A PRÓXIMA

28 de março de 2020

DISCURSO VIRAL






Há algum tempo, escrevi uma crônica, intitulada FUTEBOL, RÁDIO E TELEVISÃO. Ela começava assim:

Vocês estão lembrados como eram as transmissões dos jogos de futebol pelo rádio e pela televisão, antigamente?
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Então, vejamos como esses dois veículos de comunicação de massa falam, ou melhor, trabalham.
O Rádio
Ouvir rádio é imaginar como os fatos estão acontecendo. Todas as informações nos atingem por um único canal: a audição. Temos que ficar atentos a tudo, para não perdermos os sinais chaves da emissão.
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A Televisão
Ela é um meio frio de comunicação de massa, porque fornece baixa quantidade de informação, pois permite mais participação ao propor somente uma complementação informativa e inclui o receptor na própria mensagem, como um reflexo das ocorrências de suas realidades e experiências cotidianas.

Hoje, na reclusão imposta pelo bom senso e pelas autoridades sanitárias, por causa dessa pandemia, causada pelo Coronavírus, estamos enclausurados, e as informações nos atingem também pelo rádio e pela televisão. Bem, é mais ou menos isso, porque pela internet passa tanto o som, quanto a imagem, que nossos aparelhos receptores, os moderníssimos celulares, captam ambos, ou só o som, colocando-nos informados. Informados? Bem Quando você informa demais, você desinforma. Regrinha básica da Teoria da Comunicação.

Dentro de casa, não há como ficarmos sem nenhuma comunicação com o mundo exterior, ou melhor, sem o nosso celular ligadíssimo nos noticiários que surgem nos sonoros vídeos, onde pessoas ligadas aos fatos e políticos ávidos por audiência, discutem sobre esse famigerado COVID-19. São milhares de informações que nos atingem, tentando explicar o que é, de como surgiu e como pode ser evitada tamanha tragédia. Há de tudo. Posições médicas e discursos políticos, que se colocam contra ou a favor desse lastimável estado de crise por que passamos todos nós. Recolhidos em nossas casas, somos receptores passivos, com poucos canais de retroalimentação, mas, nem por isso, deixamos de nos manifestar, pois a internet nos proporcionou esse feedback, ausente até pouco tempo, mas isso nos tornou comentaristas independentes e passaram a proliferar, por ondas hertzianas,  discursos, os mais estapafúrdios possíveis, na grande rede aberta da Web.

Mesmo com o celular na mão, olho na minúscula telinha desse aparelho quase mágico, de última geração, não há como deixar de dar uma espiadinha também na tevê da sala, uma gigantesca tela de 50 polegadas, resolução 3840x2160, painel RGB, de 8 bits, com vídeo em frequência de tela MR, HDR, com mega contraste, PurColor, contrast Enhancer, Auto Motion Plus, modo filme, Dolby Digital Plus, Multiroom Link, Smart Service, Navegador Web Browser, Bluetooth Low Energy e, aimda por cima, bem fininha...
É impossível desprezar a tecnologia da informação. E nesse mundo cibernético, principalmente na atuação das mensagens via internet (áudio e imagem de alta e baixa saturação), nós todos exercitamos, a todo instante, juntamente com a tentativa de decodificação das mensagens, a nossa capacidade de abstrair, tentando separar pelo pensamento o que não está separado no objeto do pensamento. Portanto, essa ação de abstrair, quando negada, torna-se um elemento impeditivo da compreensão da mensagem. Assim, lança-se mão da redundância, para eliminar a entropia. Observa-se isso, facilmente, nos campos de futebol, quando o ouvinte assiste aos jogos com o radinho de pilha colado ao ouvido, escutando o que seus olhos veem. Da mesma forma, tomamos conhecimento dos fatos narrados pelos repórteres de rua, sobre a pandemia do coronavirus, que têm suas informações discutidas por “ancoras” nos estúdios das emissoras de televisão. Estes comentam os comentários deles, numa sopa de letrinhas que correm no rodapé do écran, temperada com metalinguagens e redundâncias, para evitar entropias, surgindo assim, imediatamente, como corretora, uma neguentropia, percebida nos discursos de protesto ou de concordâncias, por parte dos telespectadores distantes. Todavia, o mais importante fato que surge dessa fenomenologia televisiva é que a ansiedade de ouvir supera a obrigatoriedade de ver, como se a voz do outro (âncora da emissora), vinda  do interior do estúdio colorido e misterioso, um oráculo eletrônico, fosse a expressão suprema da verdade (discurso do Mestre), deixando o receptor à mercê de um entendimento impossível de ser alcançado por sua própria capacidade de reflexão e de abstração. Está, assim, preparado o discurso ideológico que, a partir desse momento, agirá também neguentropicamente, para corrigir uma possível falta de comunicação interpessoal. O receptor dessas mensagens passa a ser um súdito dependente desse meio, pelo discurso do âncora e, ao mesmo tempo, um repetidor passivo de seus pensamentos.

O vírus continua atacando, mas os discursos que o sustentam, não devem ser mais perniciosos do que ele. É o que esperamos.

ATÉ A PRÓXIMA


24 de março de 2020

TODOS SOMOS ANACORETAS


Saí do mundo e segui
no rabo de um cometa.
Desse vírus eu fugi
e virei anacoreta.


Depois de uma bobagem em forma de versos, em redondilha maior, para animar a festa, vamos falar de alguma coisa mais séria. Vamos lá. Se você for ao GOOGLE, vai ficar sabendo que os anacoretas eram monges cristãos ou eremitas que viveram em retiro solitário, nos primórdios do cristianismo e, mais tarde, dedicaram-se à oração e à produção de textos litúrgicos, para com isso alcançar um estado de graça e pureza, através da contemplação.
Muito bem, mas o que significa essa palavra, desconhecida de muita gente? Anacoreta vem do grego, άηαϏωρετής, solitário, eremita (do grego, έρηϻιτης), o que se retira (do mundo).
Os anacoretas, então, eram monges cristãos que viveram em retiro. O termo anacoreta também é utilizado para chamar um penitente que se afastou do convívio humano para viver em solidão. Ele participava da liturgia, ouvindo o serviço e recebia a sagrada comunhão.
Além dos anacoretas, existiam também os cenobitas, cristãos eremitas, que rezavam e lutavam contra o demônio, em profundas meditações... Lutavam dentro e fora dos mosteiros, nos desertos, em retiros e mesmo em batalhas. Eram adestrados e estavam preparados para as lutas, aptos para combater com as próprias mãos e poucas armas os que renegavam a fé divina. Lutavam contra os vícios da carne e dos pensamentos, mas se relacionavam em grupos, diferente dos anacoretas, e juntos oravam e praticavam atos nem sempre, talvez, santos...
Cenobita é outra palavra pouco usada em nossa língua e também veio do grego Ϗοινόβιον, através do latim 
coenobium, aquele que habitava o convento.
Antes de continuarmos, é importante salientar que essas duas palavras, anacoreta e cenobita são vocábulos pouco produtivos em nossa língua. Produtivos significa que não são muitos os vocábulos que deles derivam. Vejamos: a) do grego άηαϏωρετής temos: anacoreta, anacorético, anacoretismo; b) do grego Ϗοινόβιον temos: cenobita, cenobiarca, cenóbio, cenobial. Todos esses vocábulos entraram em nossa língua por via erudita, isto é, com mínima ou nenhuma alteração fonética em sua evolução. Quando um termo entra em nossa língua, sofrendo algumas alterações fonéticas, diz-se que a via foi popular. Há casos em que vocábulos, presos a um mesmo radical exterior, entraram em nossa língua, uns por via popular e outros por via erudita. Tomemos os exemplos. Latim lacte: por via popular, temos, leite. Por via erudita, temos lactante. Latim paupere: por via popular, temos pobre. Por via erudita, temos paupérrimo.
Uma interessante visão da retomada do espaço acústico sensorial dos tempos primitivos, os primórdios do cristianismo, é a de Marcelo Molnar, que compara os aficionados jovens de hoje, presos a seus celulares, com os anacoretas medievais, recolhidos a um intimismo quase doentio, através de suas parafernálias eletrônicas, ouvindo seus ritmos preferidos e isolados do mundo. 
Marshall McLuhan desenvolveu tese nesse sentido, muito antes, nos anos 60, estudando o processo da comunicação. Mas , continuando. Na mesma linha de raciocínio, os cenobitas de antanho, monges que se misturavam entre si, nas práticas litúrgicas dos conventos, como já dissemos, teriam,  como atuais seus representantes, esses mesmos jovens (e alguns velhos), que fofocam nas Redes Sociais dessa maravilha internética.
Muito interessante como o tempo passa, o mundo gira e as coisas se repetem. Esse frenesi que causa em todos nós a tecnologia eletrônica do mundo cibernético, nos distrai dentro das clausuras de nossas casas, transformadas em conventos, e nós em anacoretas, trazendo um pouco de prazer, nesses dias de recolhimento forçado, não por amor a Deus, mas por medo de ir mais cedo prestar contas a Ele!
Créditos:
1) www.molnar09.wordpress.com/2010/03/23/cenobitas;
2) NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955;
3) YARZA, Florencio I. Sebastián. Diccionário Grieco-Español, Ed. Ramón Sopena, S.A., Barcelona, 1954.

ATÉ A PRÓXIMA

16 de março de 2020

PROFESSOR DE FELICIDADE





Vou falar na primeira pessoa, porque a mentira nunca vem em primeiro lugar em qualquer narrativa. Ela vem, muitas vezes dissimulada, lá no fim da história. Às vezes, no meio. O que vou narrar são fragmentos de uma vida dedicada ao ensino, verdadeiramente. Atividades dentro de salas de aula, durante muitos anos...
Há mais de 60 anos eu inovava em sala de aula, tentando dar aulas diferentes. Minhas novidades pedagógicas surgiram muito antes da Lei 5697, de 1972. Aboli, definitivamente, as notas, substituindo-as por conceitos. Quem foi meu aluno, nesse tempo, deve ainda lembrar daqueles desenhos em forma de notas. Figurinhas motivacionais servindo de conceitos, que se encaixavam na faixa etária das primeiras séries do então Curso Ginasial. Ficaram famosos, entre a gurizada, ei-los: Porquinho Rindo; Porquinho Sério; Porquinho Triste e Porquinho Desesperado. Não havia correspondência entre estes termos linguísticos e os números. Era só isso, mesmo. Os alunos pareciam que gostavam da minha avaliação e percebiam que com um bom desempenho na avaliação, todos ficavam felizes, e como sorriam... mas ao receberem um desenho de porquinhos aflitos, agitados, percebiam, também, que o tal Porquinho Desesperado não era lá mesmo uma boa coisa. Evidentemente, aquilo era o resultado de algo nada interessante para a sua vida escolar. E ficavam tristes. Mas a tristeza passava rápido, porque, olhando para a figura dos porquinhos desesperados, ingenuamente riam e a ludicidade daquele ícone não agredia como os numerais 1, 2 e ZERO. De fato, ninguém queria ter uma coleção desses suínos... mas que eles eram bonitinhos, eram, sim! Em sua ingenuidade, chegavam a interpretar aquilo como uma brincadeira. Aquelas crianças aceitavam essa nova forma de materializar um desempenho escolar - estou certo disso - porque a nota em forma de desenho, uma quase brincadeira mesmo, representava, no fundo, no fundo, o seu desempenho nas provas e a sua dedicação aos estudos. De fato, havia embutido nos conceitos, um valor, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Um troféu gostoso, lúdico, para o desempenho de cada um. Nada de destruir a participação do aluno, muitas vezes criativa, nas tarefas propostas, com palavras incompreensíveis, sem censura, sem rabiscos alusivos aos erros ou equívocos. Eu não rabiscava a prova de meu aluno. Nada disso. Evidentemente, não valorizávamos, também, o erro.
Abolimos, em seguida, o uso do terno e gravata como uniforme do professor em sala de aula, substituindo-o pelo jaleco branco. Fiquei até parecido com médico. Foi uma atitude unilateral, passível de repreensão, eu sei, mas o calor de 40° da Cidade Maravilhosa, em seus verões de arrepiar, falou mais alto... Abolimos, logo depois, o uso do livro didático em sala de aula e sofremos a fúria das editoras especializadas. Passamos a usar qualquer jornal do dia, sem exigir nenhum, em especial. Tentávamos fazer com que o aluno adquirisse o hábito de comprar e ler jornal, mesmo em dia de recesso, feriados, fins de semana e férias... Pouca coisa? Creio que não. Eles participaram, pela primeira vez, de uma relação comercial e aprenderam a gostar de ler. Todos gostavam de ler, nos jornais, a seção das Histórias em Quadrinhos, um “entre lugar”, dividido com a literatura e o cinema. Nunca eles haviam comprado alguma coisa sadia, para consumo próprio. Estavam comprando e consumindo informações e notícias, as mais variadas possíveis, a primeira parcela de uma enorme conta de somar, na contabilidade da vida, formando, cada um, o seu repertório cultural. Muitos aprimoravam, com o jornaleiro da esquina da escola, a sua matemática, pois ficavam atentos ao troco, quando a nota ou a moeda era de valor maior do que o jornal do dia. O próximo passo foi abolir o tradicional quadro-negro, onde se escrevia qualquer bobagem. Só o usávamos para a fixação da aprendizagem. Creio que pela primeira vez se utilizou, em colégio público, nas aulas de Língua Portuguesa, material tão, aparentemente, incompatível com fonemas, sílabas, classes de palavra, conjugações, vozes verbais, figuras de sintaxe, polifonia, metafonia. Tudo era misturado a muita alegria e satisfação. Passamos também a usar cola plástica, tesoura, barbante, papel de mimeógrafo, recortando as notícias do dia, interpretando-as e com elas partindo para a leitura e para as análises de todos os tipos programáticos, montando até um novo jornal, deixando a sala imunda para o professor seguinte de outra matéria, que me substituiria. Como isso deu trabalho aos serventes! Depois de algum tempo e muitas reclamações, as aulas de Língua Portuguesa passaram a ter mais alguns minutos de duração e foram colocadas nos últimos seguimentos do horário do dia, fechando o turno da manhã, para faxina geral. Ocorreu, então, mais uma aceleração pedagógica, inovadora, com reflexos futuros, pois as aulas de Curso Ginasial passaram a ter 100 minutos de duração. Estas foram algumas atitudes pedagógicas tomadas há mais de 60 anos, em escolas públicas oficiais, sob a responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara, hoje, Estado do Rio de Janeiro. Sabem em que colégio tudo isso começou? Nada mais, nada menos que no maior colégio do Rio de Janeiro, na época: o Instituto de Educação, aquele mesmo! Aquele prédio lindíssimo, em estilo barroco mexicano, na Rua Mariz e Barros, 273, entre a Praça da Bandeira e a Tijuca, que formava as nossas professorinhas primárias, com diminutivo afetivo e tudo. Pelo que fizemos, quase apanhamos das mães dos pequeninos alunos que não entenderam imediatamente o que estava acontecendo. A Direção queria me expulsar do magistério. Lutei bravamente, numa época difícil de regime político de exceção, mas consegui não ser penalizado e, de certa forma foi reconhecido, saindo até vitoriosa a minha teoria revolucionária de motivação na aprendizagem. Se fomos seguidos? Não importa. O que importa é que fomos reconhecidos, não imediatamente, pois a educação é um processo, lento e contínuo. Não existem frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer...
Depois do Instituto de Educação fomos trabalhar no Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, no subúrbio da Leopoldina, na Penha. Lá também inovamos. Criamos a primeira radioescola do Brasil, em colégio público de Nível Médio, graças à compreensão de seu diretor, um professor fabuloso, um homem de bem, de fina sensibilidade, filólogo e poeta. O Professor Jairo Dias de Carvalho, que já não está entre nós, tornou-se meu grande amigo, desde os bancos escolares da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Jairo Dias de Carvalho dirigiu o Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade com saber, dignidade, patriotismo e democracia plena, em tempos muito difíceis, de estado de exceção conflagrado institucionalmente. Recebeu com todo respeito e atenção meu projeto inovador de Comunicação Pedagógica, implantando no colégio que dirigia, a Radioescola Gomes Freire de Andrade. O empreendimento foi reconhecido pelo Secretário de Estado de Educação, na época, Celso Octávio do Prado Kelly, pai do João Roberto Kelly, o músico carnavalesco de marchinhas irreverentes, estão lembrados?
De lá saí para o Colégio Estadual Barão do Rio Branco, na última estação do trem da Central do Brasil, bem depois de Campo Grande. Ficava no Matadouro de Santa Cruz. Lá, introduzimos a semente dos festivais de música e poemas escolares, numa “mistureba” cultural de shows e poesia. Além disso, construímos, com recursos próprios, uma sala especial de Latim. Isso mesmo, Latim. Parecia uma sala de museu. Gastei meus parcos recursos. Suados cruzeiros, cruzados e muitas novas moedas das quais não mais lembro seus nomes, nem delas tenho saudade. Mas tudo em educação, se não tiver muito amor, comprometimento, conscientização e prática contínua, se esvai como água entre os dedos e a sede do saber não satisfaz o desejo de se crescer intelectualmente. Lutei, lutei muito. Coloquei em livretos todas essas experiências, que o editor, Lúcio de Abreu, da Editora Gernasa, publicou para orgulho meu. Lúcio de Abreu foi um arauto da boa e inovadora educação; um grande amigo, que também já se foi e a quem muito devo, por acreditar nas “maluquices" de um jovem e inquieto e iniciante professor. Nunca acreditei que somente o cuspe e giz pudessem servir para muita coisa dentro de uma sala de aula. Pois é, existe ainda no Brasil uma grande defasagem entre o que o aluno espera da escola e aquilo que ela o oferece. É verdade. Desenvolvi esse tema também em um livreto da Editora do Lúcio de Abreu. Do meu bom amigo Lúcio...
Se estes fragmentos memoriais vão servir para alguma coisa, não sei dizer. Sei que enquanto me lembrar do que fiz de bom, de útil e correto vou registrando, antes que as nuvens negras da tempestade cerebral descarreguem seus raios fúlgidos, mas trágicos, em minha cansada memória e apague tudo. Nessa época atual, em que a figura do professor está tão desprestigiada, sirva essa voz tosca de um mestre-escola, para mostrar que ensinar é ainda a mais nobre de todas as profissões. Assim, entendo e sempre entendi que o professor tem de ser mestre do absurdo, porque só os grandes impactos constroem, enquanto as pequeninas coisas, sempre repetidas, decoradas, corroem, enjoam e estragam a nossa vida, a vida de todos nós, a vida do homem comum, a vida de nossos alunos. Todos nós precisamos e, o aluno, em particular, precisa de felicidade para viver, desenvolvendo-se confiante. É dever do professor abastecer essa demanda. O professor, antes de tudo deve ser professor de felicidade.

ATÉ A PRÓXIMA

1 de junho de 2019

UMA RECENSÃO À GUISA DE PREFÁCIO OU VICE-VERSA: UMA VIDA ALEGRE DE AMOR E POESIA





Alegria” é o terceiro livro do poeta Ayrton Bento Mafra. Antes, havia publicado “Amor em Evidência”, 2009 e “Reflexões”, 2015. Nos três livros desse extraordinário poeta catarinense, que surge sem alarde, sem grandes anunciações, sem uma conhecida editora a lhe apresentar ao mundo literário e à crítica especializada, estão reunidos mais de mil poemas, em forma de sonetos e sextilhas, todos dentro dos rígidos padrões da arte poética. Ayrton não se esqueceu de contemplar, em “Alegria”, o poema moderno. Seu texto modernista não é radical, não desrespeita os ditames gramaticais nem se transforma em enigmas indecifráveis. Volta-se para o cotidiano, com um vocabulário sem nenhuma pompa, num aproveitamento poético da linguagem espontânea, construindo versos livres de rimas, com estrofações, as mais variadas possíveis. Todas essas publicações, que vieram a lume, foram preparadas por pessoas de seu convívio diário, seus parentes mais próximos, filhos e, principalmente, sua esposa. Assim sendo, senti-me extremamente horado ao receber o convite para preparar uma introdução a esse seu terceiro livro, “Alegria”, que, realmente, é um hino ao amor e ao próximo, pois o título contagia.... Seus familiares e amigos mais chegados, sensíveis ao formidável impacto estético que os seus versos lhes proporcionaram, foram os editores dessa terceira publicação. Eles não só permitiram que a pródiga e agradabilíssima produção poética de Ayrton Mafra fosse apreciada publicamente, como ofereceram à crítica literária especializada um magnífico material, para o surgimento de significativas análises e microanálises literárias, que, certamente, colocarão o nome de Ayrton Mafra ao lado dos mais significativos poetas brasileiros.
Como é sabido, toda e qualquer obra de arte está sempre centrada na ótica do receptor e, por conseguinte, somente quando o atingir, como destinatário final, estarão as mensagens poéticas, no caso os poemas de Ayrton Mafra, poeta catarinense da pequena, mas próspera e bucólica Ilhota, prontas para os mais significativos e diferentes estudos críticos especializados. Então, chegou o momento. Três livros já estão à disposição do leitor sensível ao belo.
Não pretendemos, aqui e agora, desenvolver uma teoria sobre o retorno do metro clássico na poesia moderna, mas e somente iniciar um movimento para chamar a atenção dos estudiosos a respeito de uma grande voz poética que trabalha, sim, o verso clássico com o rigor que lhe é exigido, e que não o aprisiona nas amarras parnasianas, mas o torna deliciosamente agradável aos ouvidos, suavizando o ritmo alucinado das cesuras métricas, com um conteúdo variadíssimo de temas que levam-nos a refletir sobre a vida e o comezinho do dia-a-dia, deixando-nos envolver pela harmonia rítmica, compassadamente estruturada na singela beleza de suas rimas. Assim essa voz poética, uma das mais significativas desse pós-modernismo sincrético, lega-nos, com a publicação desses seus três volumosos e preciosos livros, um texto poético denso, sem excessos e obediente às mais rígidas estruturas da arte poética.
O terceiro livro de Ayrton Mafra, “Alegria”, apresenta três tipos de poemas: o soneto, a sextilha e o poema livre na concepção modernista. Nesse novo livro, o poeta continua privilegiando o amor e a natureza, como os grandes temas centrais de sua obra. Portanto, o Leitmotif, responsável pelo desenvolvimento de seu eu-lírico, muitas vezes intimista, leva-o a ver e a sentir, de maneira peculiar, o mundo que o cerca, através de ritmos expressivos, mas vigorosos, tanto nos sonetos como nas sextilhas. O livro inicia com o soneto que dá nome à obra, numa ode à vida. É uma homenagem à poesia, que sustenta alegremente seu viver. Para o poeta, a poesia é um bálsamo ao seu sofrimento, que se apresenta latente, nunca manifesto, e que surge, muitas vezes, por antíteses, implícito, aqui, no último verso do primeiro quarteto, onde vocábulos fonéticos, por exemplo, significativamente representativos da vida como alegria, que suplanta tudo, surgem (botapra cimasustenta – vida - alimenta): “que me bota pra cima, me sustenta”, e nos dois últimos versos do segundo quarteto:   ainda me dá vida, me alimenta, / levanta o meu astral dia após dia”. Estruturalmente, neste soneto, composto todo por versos decassílabos heroicos, com o esquema de rimas abba – baab – ccb – ddb – , as duas quadras são a proposição temática e os dois tercetos a conclusão, chegando-se, ao décimo quarto, o último verso, à chave de ouro do soneto, uma perfeita e completa semantização da proposta inicial.

ALEGRIA

Bem viva, mais e mais se implementa
em mim, duma maneira luzidia,
essa coisa chamada de alegria
que me bota pra cima, me sustenta.

Constantemente, em minha companhia,
é ela quem, à flor dos meus setenta,
ainda me dá vida, me alimenta,
levanta o meu astral dia após dia.

Eu sinto, de maneira enorme, imensa,
que ela simplesmente é a presença,
presença que, demais, se evidencia

bonita, importantíssima, constante,
preciosa como a gema do brilhante,
brilhante como a luz da poesia”.

            Não é nossa intenção realizar, com o presente comentário, uma análise estilística desse novo livro de Ayrton Mafra, nem de alguns de seus poemas, isoladamente, mas pretendemos, isto sim, tentar mostrar o valor intrínseco de suas produções, pinçando do conjunto dessa significativa obra poética, que agora o leitor tem em mãos, alguns dos mais interessantes e significativos artifícios técnicos de que o poeta lança mão, para construir seu texto lírico. Tentaremos, simplesmente, ressaltar em seus sonetos, sextilhas e demais poemas, aquilo que, a nosso juízo, é o condutor de seu lirismo, o amor à vida, fator de transfiguração de uma realidade só sua, íntima, mas que, ao mesmo tempo, é plural, pois tudo que sensibiliza o poeta é fruto de observações no ambiente circundante, onde pessoas interagem. Assim, o poeta se transporta para o outro, com o qual está comprometido socialmente.

            Formalmente, para materializar suas pretensões poéticas, Ayrton recorre a inúmeras formas de criação, sendo o enjambement uma delas em especial e com a qual trabalha magistralmente. Essa partição da frase de um verso, sem respeitar as fronteiras claras do sintagma, colocando um termo do sintagma no verso anterior e o restante no verso seguinte, impulsiona o ritmo da leitura e cria o efeito de coesão, união, muitas vezes, do fundo à forma [ó]. O poema ALEGRIA apresenta esse artifício no primeiro verso. Observem: “Bem viva, mais e mais se implementa / em mim, duma maneira luzidia...” O enjambement se apresenta às centenas, em toda a obra, cada um com suas interpretações subjetivas, mas consistentes, criando formas expressivas, que vão dar ao conjunto mais beleza e nos causa encantamento, personificando um ritmo próprio.

            Outro artifício muito empregado pelo poeta de “Alegria” é a maneira de construir as frases. Muitas vezes o poeta desloca termos de uma oração, ou orações de um período. Esses deslocamentos, ou hipérbatos, oferecem ao contexto a possibilidade de outras interpretações, ou melhor dizendo, fazem com que haja a possibilidade de se ler o latente, aquilo que está escondido no pensamento do poeta e que uma simples inversão sintática demonstra manifestamente. Assim, no soneto A ARTE VERDADEIRA, pode-se ler: “a mente ser, dos versos, a rendeira” (ser a mente a rendeira dos versos).  Aliás, esse hipérbato é combinado, muitas vezes com um outro artifício, um cruzamento morfológico. Esse artifício, ou figura de construção, também muito usado por Ayrton, se chama quiasmo, uma maneira bimembre de construir períodos, em que os elementos mórficos se cruzam em “X”, realçando sonora e semanticamente as frases do período envolvidas. Observem, ainda no mesmo soneto: “O que me encanta mesmo é, certamente, / os versos feitos renda pela mente; / a mente ser, dos versos, a rendeira” (mente  X  mente). No soneto A OBRA FICA, o quiasmo se apresenta no primeiro terceto e pelo cruzamento dos significantes morfológicos a ideia desenvolvida cresce e se presentifica com toda a sua força significativa. Observem: “Sim, deixa quando morre, na verdade, / beleza rica de eternidade; / eternidade, de beleza rica”.  Mas é no soneto           que transcrevemos, em seguida, que o poeta, mais sensivelmente se utiliza do quiasmo e, ao mesmo tempo, mistura inúmeros movimentos rítmicos sinuosos, verdadeiras ondas de plurissignificações cognatas, com vocábulos que estendem e distendem suas sílabas, em expressivas sinéreses e diéreses, observadas nas rimas das duas quadras deste belo poema, construindo, com isso, os precisos decassílabos com suas cesuras heroicas. Observemos:
  


CONVIVENDO

Aqui, neste convívio harmonioso,
na nossa relação homem/mulher,
eu vejo quanto és um ser precioso,
eu vejo quanto sou um ser qualquer.

Afirmo, sob um tom bem ruidoso,
com toda a nitidez que se requer:
Tu és um ser humano grandioso
e eu nem sombra tua sou sequer.

No nosso conviver humano é quando
me sinto mais e mais te contemplando,
me sinto mais e mais um contemplado.

No nosso conviver interessante,
te vejo muito mais apaixonante,
me vejo muito mais apaixonado.


Em todos os poemas encontramos inúmeros artifícios, tanto na construção sintática, quanto na forma de elaborar o pensamento. São enjambements, hipérbatos, anáforas, quiasmos, hipálages, antítese, um enorme número de fenômenos da estilística, muitas vezes num só poema, como exemplifica o soneto AMARRANDO O SOL, numa temática mitológica grandiloquente, falando sobre os povos incas da América do Sul. Hipérbatos, anáfora e enjambement surgem neste, podemos dizer, um dos mais bem elaborados sonetos, quanto à morfologia e estrutura sintática empregadas, com inúmeras e nítidas características parnasianas, onde o Sol corresponde ao Prazer, sendo o quarto verso o único decassílabo sáfico, construindo o próprio ritmo do alegre milagre da vida. Transcrevo-o para o leitor visualizar estas observações:

AMARRANDO O SOL

Tal como os incas, numa grande lida,
em mim, em meu espírito, em meu ser,
quero amarrar o sol... O do prazer,
o da alegria de curtir a vida.

Pra que, ficando, em mim, possa manter
do espírito, na pedra esculpida,
bem preso, amarrado e sem saída,
o sol da alegria de viver.

O povo inca, gente culta e brava,
ter o sol amarrado, mais buscava,
prendê-lo sobre a pedra, mais queria.

Eu, como os incas, numa ação ousada,
do espírito, na pedra entalhada,
quero amarrar o sol... O da alegria!
            
Quanto aos tipos de poemas utilizados, como já dissemos, predomina o soneto clássico, em versos decassílabos, predominando os heroicos, e alguns estruturados em versos alexandrinos, clássicos e modernos, com uma variedade enorme de esquema de rimas, predominando, no geral, o esquema de estrofes: abba  baab  ccd  eed .

As sextilhas são compostas por versos alexandrinos clássicos, perfeitos, com o seu quebrado de 6 sílabas, muitas vezes um hemistíquio, num esquema de rimas aabccb, variando as palavras rimadas nas sucessivas estrofes de cada poema. Variam, também, o número de sextilhas em cada poema apresentado.

Os versos livres, em poemas modernos, são soltos, desestruturados, mas com o mesmo vigor significativo do poetar nas estruturas clássicas e tradicionais.

O condutor lírico de sua imagética continua sendo o amor à mulher amada, o amor à vida e o amor a tudo que o empolga. Raramente, e só por antítese, o poeta estrutura seus versos fora dessa linha, condutora do eu-lírico, que desenvolve seu universo intimista e sofisticadamente singelo. Exemplo disso, podemos encontrar no soneto A RAIVA, quando o poeta em tom discursivo, atropelando a sintaxe métrica, em expressivo enjambement, traz o amor à cena, por oposição, por antítese, portanto, estando o título, apenas, ressaltando o contrário. Com esse ardil estilístico, o poeta exorcizará o mal na chave de ouro do soneto: “não se deve ter raiva de ninguém”.

Já havia dito, analisando estilisticamente o seu soneto, IPÊ-AMARELO, de seu primeiro livro, “Amor em Evidência”, que as diversificadas estruturas métricas, em seus sonetos, lembram os ritmos, em quiasmo, do autor paraibano de EU E OUTRAS POESIAS, longe das metáforas e das comparações encontradas nos versos de IDEALISMO, poema mórbido de Augusto dos Anjos. Todos os sonetos de Ayrton Mafra são, com raríssimas exceções, em versos decassílabos heroicos, o metro das epopeias, o metro das grandes emoções. Contudo, é com essa força rítmica, com seus quiasmos e suas inversões sintáticas, que Ayrton Mafra irá exaltar o amor e a mulher amada, pois em sua obra poética não existe o amor falso das hetairas, dos sibaritas, das Messalinas e de Sardanapalo...

Ayrton exalta o amor sem o padecimento da dúvida, da rejeição, da amargura, afastando-se do drama barroco do sofrimento, do mal do amor do século XVI, que, negado, ou impossível de ser alcançado, levava os poetas ao desencanto e ao definhamento. Sua poesia é um canto de louvor à felicidade, que invade seu ser e o eu-lírico explode em manifestações rítmicas de todos os tipos, utilizando-se de inúmeros recursos poéticos constantemente nos versos de Arte Maior. E serão, justamente esses hipérbatos, enjambements, condicionantes metafóricos líricos que alongarão a amplitude de suas manifestações românticas. Ayrton Mafra é um poeta romântico pelo sensualismo velado que se manifesta timidamente em sua poesia (AMOR QUER ATITUDES); por seu vocabulário simples ao declarar-se à mulher amada, expressando toda sua felicidade em amar, exemplificado no último terceto do soneto AMO-TE MAIS isso exemplifica: “Te amo e vou dizer, feliz da vida, / que, agora, meu amor, minha querida, / te amo muito mais do que te amei”. Seus versos explicitam o romantismo através de inúmeras metáforas ligadas à natureza como fonte da beleza, recheadas de sinestesias, metáforas evocativas, sempre dignificando a figura da mulher ideal, personificada em sua amada esposa (APAIXONADO – AS FLORES). Seus versos cantam como um singelo menestrel e registram formas expressivas que bem poderiam integrar o patrimônio imaterial de um novo lirismo poético, considerado o amor como lenimento, embora “ainda como um fogo muito forte; / agora, bem mais forte e bem mais vivo! ” (AGORA, MUITO MAIS) e não como um amor contraditório, enquanto sofrimento. A poesia é sublime por parecer impenetrável, pois é só observar o que dissera sobre o amor o nosso poeta maior: “Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer” (Luís de Camões). 

Assim, o tema do amor, combinado com a alegria e o prazer,  é uma constante na obra de Ayrton Bento Mafra, bem como a religiosidade, o pagão versus o profano, o carnal, a mistura de todas as tendência hedonistas, porque somos humanos, porque temos alma, porque é a alma que nos diferencia dos demais animais e nos coloca em outro plano simbólico... Todos esses assuntos perpassam seus poemas, muitos também dedicados a familiares, a pequenas coisas e lembranças, a figuras históricas, enfim, a tudo que o poeta vê e sente, por mais abstrato que seja, observando sempre e reagindo ao mundo, com a força das informações adquiridas, responsáveis pela formação de seu repertório.  

Pode-se dizer, ainda, que em “Alegria”, encontramos muitos poemas que se apresentam como verdadeiros cromos visuais, numa sinestesia transformadora, que dá às suas composições a qualidade necessária, para que as mesmas se coloquem entre as mais significativas formas de versos de Arte Maior de nossa literatura. A obra poética de Ayrton Mafra é magnífica e imensa. Ela está muito além das amarras e dos carimbos declaratórios dos estilos de Época, porque é universal, enquanto expressão do mais profundo sentimento humano: o amor. Se é parnasiana, quanto à forma, ou se é romântica quanto ao fundo, o fato é que Fundo e Forma se adequam, num frenesi rítmico, estrutural e conceitual, a ponto de nos comover, envolvendo-nos, com sua fantástica técnica de nos apresentar o belo e tudo aquilo de que não somos capazes de transfigurar. Só ao poeta é dado o direito de transgressão. Da transgressão que cria, que produz novas formas, formas expressivas com novos significados. O poeta diz o não-dito e aceitar essa nova concepção da sua realidade é aceitar o poeta em toda a sua magicidade. Ler suas criações é se resignar a contemplar silenciosamente a expressão do belo, extasiando-se diante da beleza, que nos envolve emocionalmente. Sua poesia está à espera de um estudo crítico isento de pruridos estéticos e preconceituosos. Que se apresentem os mais eruditos da crítica pura!

Para analisar uma obra tão densa quanto extensa, além de se exigir do crítico literário engenho e arte, precisa-se definir o seu lugar de nascimento, que parece não ser aqui e agora. Nesse momento resignemo-nos somente em nos deleitarmos com esses magníficos versos de meu amigo Ayrton Mafra, um poeta perfeito, um ser humano excepcional. Foi, portanto, com imenso prazer que li e tentei preparar o caminho para que a sua obra seja estudada por especialistas, pois se trata de um dos mais significativos poetas da região do Vale do Itajaí que, com seus versos em ritmo clássico, surpreende nosso espírito e nos acalanta com a doce e fabulosa “Alegria” desse seu terceiro livro de poemas que, como ele mesmo disse, ao fim do primeiro soneto, é “preciosa como a gema do brilhante  /  brilhante como a luz da poesia”.  


ATÉ A PRÓXIMA
































8 de maio de 2019

MISTÉRIOS


- MISTÉRIOS -



Realmente existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado, em solidão. Somos uma espécie social e dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado.
Não vou contrariar, agora, os mais significativos doutores das ciências sociais e muitos entusiasmados psicólogos das mais avançadas linhas francesas, de viés psicanalítico, pois deixei os grandes centros em que atuava no meio de verdadeiras multidões, vivendo em ambientes repletos das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagiam comigo, para vir para o campo, para juntar-me aos cantos dos pássaros e aos mugidos do bom gado gordo, que pasta nas relvas dos campos. Mas sinto-me, hoje, como já me sentia outrora, solitário, muitas vezes. Aposentado, escolhi a paz da cidade do interior, rodeada de fazendas, com suas imensas voçorocas dentro de íngremes terrenos, transformados em pastos de poucos bois e muitos cupinzeiros.
Mas faz parte da vida envelhecer. Não um envelhecer sem propósitos, como estação terminal de uma breve viagem, mas um envelhecer com um significado robusto que justifique a alegria de se sentir útil, nem que seja para se lamentar em missivas tristes, às vezes indecifráveis, sem estilo e, possivelmente, até sem destinatário. O importante é conviver, interagindo com o próximo de qualquer forma, pois a solidão é amedrontadora e poucos sabem como lidar com ela.
Às vezes sozinho, nessas regiões isoladas, ela – a solidão –  me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras da venda, refugio-me sempre em meu quarto de leitura. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas há outra, mais amedrontadora, até doentia. Fujamos dessa. A vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Vivendo, aprendi a afastar todo o tormento que nos isola e que nos aprisiona. Mas aprendi, por outro lado, a viver a talvez gostosa dualidade barroca, que projeta a alegria de viver em grupo de equivalentes e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, por pura incompreensão dos fatos, ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. Mesmo agora um tanto isolado, procuro sempre alguém para confirmar se estou vivo mesmo.
Mas a vida de quem já muito viveu é mesmo misteriosa, quando criadora de situações dicotômicas. Para que ela seja digna tem de ser entendida e respeitada pelo outro. Todos nós temos de saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta, mas que também mata, porque deprime. Saber viver nesses limites é um mistério e é para poucos. Devemos nos preparar para vivermos em grandes grupos e também em regiões de pouca densidade demográfica. É bom experimentar tudo, sem esquecer que a vida exige e reclama por atenção. Mas em todas as situações, todos nós gostamos de ser úteis. “Só o homem valoriza a utilidade! ”. Li isso num jornalzinho que circulava num asilo para idosos, ao visitar um parente de meu pai que lá só ficava sentado...  e nunca mais esqueci.  Os mistérios da vida não foram explicados nas escolas regulares, por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios, os mistérios da vida, pertencem a um outro sistema simbólico, não se iludam!
Numa tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, lembrei-me da visita que fiz, há muitos anos, à românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga. Lá, depois de percorrer os silenciosos corredores de pedras escuras, com artes de todas as épocas, penduradas nas paredes descascadas, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele cansado funcionário, já idoso, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava só, num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando comigo por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente todas aquelas estórias escritas nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior sagrado daquele templo bracarense, respondeu-me, sentindo-se útil, pela única vez em que eu o solicitei, que aquilo representava um mistério de Deus. E transformando-se, agora alegre e feliz, gritava contente, cumprindo sua missão de guia: - “Mistérios de Deus. Mistérios de Deus! ”

21 de dezembro de 2018

UMA CASA AMARELA QUE PARECIA MAL-ASSOMBRADA




Imaginem uma menina de 10 anos publicando um livro para outras crianças também de 10 anos. Que coisa maravilhosa! Agora, imaginem que essa criança de 10 anos tem um avô que comenta os livros que muita gente escreve e também publica livros para gente grande, de todas as idades, inclusive para crianças de 10 anos.  Pois é! Acabo de receber um presentão de Natal: o livrinho de minha neta, Alice Queiroga Feijó, chamado A CASA MAL-ASSOMBRADA. Foi muita emoção, pois não moramos na mesma cidade e não acompanho, portanto, o dia-a-dia dessa encantadora criança, já com lançamento de livro marcado para muito breve, numa noite de autógrafos.
Mas minha netinha não me engana, não! Lendo sua obra, A CASA MAL-ASSOMBRADA, percebi que ela é de uma criatividade espantosa, pois colocou na fantasia a realidade. Explico melhor, porque sei que ela lerá esses comentários no Blog de seu avô, onde sempre apresento críticas literárias e variadíssimos tipos de textos, às vezes até poesias... Alice e seus pais, Ana e Luiz, meu filho, moram hoje, numa linda casa toda pintadinha de amarelo, que ficou por longo tempo abandonada, numa rua muito movimentada e conhecida, num bonito bairro da cidade do Rio de janeiro. Ela sempre ouvia seus pais dizerem que, um dia, toda a família ainda ira morar naquela casa. Mas a casa estava muito feia, com a pintura toda descascada, precisando de uma boa reforma. Parecia uma casa mal-assombrada, não é minha queridinha Alice? É assim mesmo o processo da criação. A gente mistura tudo que existe com o que gostaríamos que existisse, damos a nossa opinião, colocamos o nosso tempero, que é a maneira de se contar a história, e criamos algo que vai influenciar o ouvinte, no seu caso, agora, quem estiver lendo o seu livro.
Queridinha, fiquei muito contente, feliz e orgulhoso com o que você escreveu no seu primeiro livrinho, pois você seguiu direitinho a receita para agradar o leitor. Você situou a casa, falou sobre ela e preparou um plano para desvendar um mistério. Pronto, Alice! A história ficou maravilhosa! Meus parabéns!
Viu, queridinha, como o vovô sabe tudo!

ATÉ A PRÓXIMA

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.