“Mas tem a qualidade do passe muito ruim”.
(Caio, ex-jogador e comentarista da TV Globo.
Jogo Fla X Corinthians, dia 27/10/2010, Engenhão, Rio)
Quando um comentarista de futebol se expressa, tentando analisar um momento da partida, tem ele poucos segundos para transformar seu pensamento numa frase, dentro dos padrões da língua culta. É exigir muito desse profissional. Ele recebe uma pressão psicológica muito grande, pois a rapidez das jogadas exige sua total atenção para não perder os mínimos detalhes. Ele não pode se distrair, pois os acontecimentos se modificam em segundos. E o que dizer das construções frasais que é obrigado a formular! As suas construções frasais deverão estar de acordo com o uso que fazemos de nossa língua (de qualquer língua), isto é, como o Desempenho ou o uso que fazemos dela, resultado de complexos fatores lingüísticos e extralinguísticos, quando efetivamente falamos, ouvimos, escrevemos e lemos, por exemplo. Essas mesmas construções deverão estar também de acordo com a realização dos enunciados frasais do nosso cotidiano, portanto, de acordo com o que se chama de Competência, que é o conjunto de normas ou regras internalizadas pelo indivíduo falante, que permite a ele emitir e receber mensagens da língua que utiliza para se comunicar. Pode-se dizer que essa Competência é o conhecimento que os indivíduos falantes têm de sua própria língua. Todos nós temos conhecimento de nossa língua e com ela nos expressamos. Assim, passamos a entender o outro, mas ambos, emissor falante e receptor ouvinte não têm consciência das regras que lhes permitem usar sua língua. O lingüista tem por tarefa investigar e explicar esse fenômeno. Vamos tentar. Para tanto, precisamos completar o raciocínio. Há frases que são aceitas por todos, tanto pelo falante, como pelo ouvinte. São consideradas normais. Numa narração de futebol o narrador diz: “O jogo está apresentando muitos passes errados por parte dos jogadores dos dois times”. Todos entendem. Por outro lado, é fácil concluir que pode haver frases que não se entendem imediatamente ou se apresentam sem sentido. Logo, umas são aceitáveis e outras não são aceitáveis. Essa aceitabilidade é um fenômeno intuitivo. Agora, existe uma sutileza, relacionada com à aceitabilidade, conhecida como gramaticidade, que se relaciona com aquela aceitabilidade vista há pouco, mas não se identifica com ela. Essa gramaticidade se refere a uma ordenação, organização, norma, gramática mesmo, internalizada no indivíduo falante/ouvinte, que gera certas sequências e exclui outras. Isso está ligado à competência. Já a aceitabilidade é uma noção ligada ao estudo do desempenho. Quando os locutores e comentaristas dos jogos de futebol transmitidos pela televisão e pelo rádio, ficam empolgados com o jogo, passam essa empolgação para suas análises e quase sempre ocorre o que didaticamente chamamos de incompetência da competência de falar. Isso é comum, mesmo sendo esses profissionais constantemente testados pelas empresas jornalísticas onde trabalham, pois eles possuem, por obrigação de ofício, estudo formal, o que lhes proporciona alguma facilidade de expressão e isso facilita muito seus comentários. Muitos desses profissionais, entretanto, ficaram conhecidos por desrespeitarem quase sempre a norma culta da língua e, principalmente, por se expressarem, construindo uma fraseologia própria, como era o caso do saudoso e vibrante Mário Vianna (com dois enes, como gostava de ser chamado), comentarista de arbitragem dos anos 70, no rádio e na televisão. Os comentaristas de hoje, descobriram outras formas de encenação e se apresentam principalmente na televisão. Apresentam-se quase sempre com um visual bem produzido, numa tentativa semiológica, talvez, de amenizar, com os elegantes fatos com que se vestem o fato de maltratar a norma culta da língua. Mas nos comentários de futebol, transgredir a norma culta não é lá um grande pecado. O grande pecado é pousar de autoridade e escorregar nas construções lingüísticas. A linguagem que se deve utilizar nessas ocasiões, nos comentários relacionados aos acontecimentos no campo de jogo não deve ser o registro culto da língua e sim seu registro menos rígido, menos formal, mais descontraído, digamos: seu registro familiar. Isto porque a emoção é muito significativa e está intensamente presente nos comentários desses profissionais. Deixemos a gramaticidade reger esses comentários e aceitemos os registros menos cultos da fala, sem crucificar a metalinguagem desses profissionais esportivos. Hoje mesmo, no jogo entre Flamengo e Corinthians, no "Engenhão", o ex-jogador, Caio, agora comentarista da Rede Globo de Televisão me saiu com essa: “Mas ele tem a qualidade do passe muito ruim”. Caramba! Está aí o exemplo em que se mostra a aceitabilidade como uma noção ligada ao desempenho. Se o passe é ruim, onde está a qualidade? A norma culta aceita? Não, mas a frase possui gramaticidade e a aceitabilidade intuitivamente se relacionou diretamente ao desempenho lingüístico do comentarista, que por fatores extralingüísticos, desta forma estranha se manifestou. Deu para entender? Deu. Mas, agora, o difícil de entender é o figurino de toda equipe de radialistas, locutores, comentaristas, repórteres e alguns figurantes, que se apresentam impecavelmente uniformizados, com um comportamento visivelmente integrado, para trabalhar num show eminentemente apocalíptico, como é o espetáculo do jogo de futebol. Que o diga Umberto Eco!
ATÉ A PRÓXIMA
2 comentários:
Oi,Prof
Que bom que retonou ao universo bloguístico.
Eu amo esse periodo da História do Brasil e acho que a Marquesa de Santos é sempre apresentada como vilã, ninguém imagina o que se passa num casamento,né?
Fiquei atenta à sua recomendação,espero que seja encenada aqui.
Saudações mais tricolores do que nunca e verdadeiras porque o que apareceu de tricolor novo não é normal.
Thereza
ou
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