A estação das flores sempre me despertou a vontade de viajar pelo interior do Brasil. As matas que ainda restam, do Atlântico ao cerrado, ficam, nessa época, mescladas de flores e cores. Tomei o caminho da microrregião de Campinas, por onde, em tempos remotos, passaram bandeirantes, tropeiros e muita emoção, em direção às colinas do interior. Instalei-me. Há muitos anos não andava por esses recantos. Fui visitar a 29ª Expoflora, em Holambra. Maravilhosa harmonização multicor entre a mata e o jardim. O calor pedia que eu ligasse o ar condicionado do carro no máximo. Uma seca no interior do país, provocada por fenômenos meteorológicos nos oceanos castigava a região. Os focos de incêndio, muitas vezes criminosos, ardiam e o capinzal ao lado das estradas pegava fogo. O fumo negro do mato que tomava altura impedia a boa visibilidade nas pistas de rolamento, quase todas muito bem pedagiadas. Os policiais rodoviários fizeram com que eu parasse num refúgio, pois a fumaça ofuscava totalmente a visão de todos. A espera durou uns quarenta minutos. Sentado, ao volante, dentro do carro, ar condicionado a todo vapor, esperando o vento mudar de direção, penso até que dormi. Gosto de tirar uma soneca. Se dormi, sonhei. Mas não demorou muito e as brigadas dos bombeiros cumpriram sua missão. Foram perfeitas em seu trabalho. O vento virou e logo a estrada já estava pronta para todos seguirem seus destinos. Havia, agora, pouca fumaça. Não deu outra, meu amigo fantasmagórico, aproveitando todo aquele ambiente propício à sua materialização, me cumprimentou do banco da trás, dizendo que nebulosidade é com ele mesmo... “Não me lembro de ter estado consigo visitando estes sítios, mas não me são totalmente estranhos”, disse, empregando sua sintaxe lusitana, um pouco diferente da forma com que construímos, aqui, as frases com esse pronome pessoal de terceira pessoa, para nós só reflexivo. Logo fui lhe mostrando os belos prados cultivados. Os cafezais em flor, com as touceiras bem alinhadas. Os cítricos e harmoniosos pomares. As laranjeiras com seus brincos alaranjados... Os canaviais dançando ao vento, ao som dos acordes de O Guarani do glorioso Carlos Gomes. Mostrava-lhe também as folhas rasteiras das dietéticas hortaliças, que se estendiam pelas colinas a fora, a perderem-se de vista... “Parecem-me terras do pouso das Campinas do Mato Grosso, pá!” Disse-me todo entusiasmado, reconhecendo, com sua visão atemporal, os descampados de uma antiga região de mata fechada, um insipiente bairro rural de 1767, hoje fervilhante de modernidades. “Tu confirmas que isto por cá é região de Campinas?” Disse-lhe que sim. E ele continuou: “Estamos, pois, em terras, de certa forma, desbravadas e administradas por um membro distante de minha família. Os Lemes saíram das ilhas oceânicas de Portugal, creio que da Ilha da Madeira, se não me falha a memória e, depois de muita movimentação pelo continente, seus descendentes chegaram ao Brasil. A linhagem dos Lemes é fidalga. Conheci muitos deles e me recordo agora, perfeitamente, da fisionomia de Francisco Barreto Leme, o fundador desses sítios”. Fiquei contentíssimo por ver meu amigo do outro mundo dissertando com tanto entusiasmo sobre fatos já tão esquecidos de muita gente. Devo, aqui, esclarecer ao leitor, para que não se assuste com a longevidade desse fantasma amigo, pois na eternidade, onde essa diáfana criatura vive, o tempo não mais se conta por datas, isto é, não existe o antes nem o depois. Só existe o fato, o qual se apresenta aos olhos de quem esse tempo contempla, de acordo com o que era quando começou. Parece complicado, mas quando ele me explicou isso, entendi perfeitamente. Mistérios de Deus... As suas lembranças se materializaram e meu hialino amigo foi me relatando a história daquele lugar. Ou melhor, foi me dizendo o que aquilo tudo fora e continua sendo, só que vibrantemente modificado. Coisas de fantasma, mesmo. E suas lembranças faziam-no se reportar aos Lemes. “O Francisco Barreto foi um bom homem. Trabalhador, honesto, generoso e de muita crença. Seus filhos apoiaram a doação de um terreno para construir uma pequena igreja, a primeira em Campinas de Mato Grosso”. Com uma igreja funcionando, funciona todo o resto, meu caro, disse-lhe quase como co-autor daquela incrível história. “Isso mesmo”, retrucou entusiasmado, e continuou. “Os habitantes da região se reuniram logo por ali e tudo cresceu muito rápido, mas há muito não vinha por estas bandas! Que progresso! Gostava mais dos tempos pretéritos”. Fiquei na dúvida, mas não tirei sua razão.
ATÉ A PRÓXIMA
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