NO DIA DE LUÍS DE CAMÕES
No dia 10 de junho, quando lembramos a
morte de Luís de Camões, comemoramos também o dia da Língua Portuguesa. Nada
mais justo do que dedicar esse dia à nossa língua materna, o português, língua
em que Camões cantou os feitos heroicos do povo português, em sua memorável
epopeia, Os Lusíadas, publicado em vida do autor, em 1572 (bico do pelicano
para a esquerda). Mas Camões também foi poeta lírico. Deixou-nos uma obra
significativa, composta por poemas esparsos, como sonetos, odes, canções,
tercetos, sextinas, oitavas, écoglas e redondilhas em estado de absoluta
dispersão manuscrita e impressa. Não há autógrafos da lírica de Camões. Até
1968, quando de sua morte prematura, Emmanuel Pereira Filho, até então o maior
crítico da lira camoniana, dizia que “a revisão crítica da poesia lírica de
Camões hoje se impõe como inadiável e terá de começar necessariamente pelo
enfoque de sua problemática textual”. Depois de nos deixar tão precocemente,
assumiu seu lugar na incansável busca do estabelecimento do CORPUS LÍRICO DO
POETA, o Professor Leodegário A. de Azevedo Filho, que desde o final dos anos
60, até 2011, portanto durante mais de 40 anos trabalhou para dar ao mundo da
ecdótica uma forma de solução para o estabelecimento de um corpus mínimo da
lírica do nosso maior poeta, Luís de Camões. Emmanuel Pereira Filho lutou com
todas as suas forças para salvar do esquecimento tudo o que Camões houvera
deixado no campo do lirismo poético e tentou estabelecer o CÂNONE LÍRICO, isto
é, a totalidade dos poemas que verdadeiramente sejam de Luís de Camões. Numa
época em que o material a seguir para a impressão era de difícil realização,
imaginamos como seriam os incipientes livros que surgiam. Eram de dois tipos.
Os chamados LIVROS DE MÃO (manuscritos) e os IMPRESSOS. Emmanuel dizia que o
CÂNONE LÍRICO de Camões não deve nem pode ser compreendido como todos os poemas
que Camões, por acaso, tivesse escrito, mas sim como o conjunto de dados que
possa dar uma norma ou um rumo de como Camões seja como poeta lírico. Assim,
chega-se ao seu conceito de CÂNONE. Isso estabelecido deduzir-se-á que tenhamos
de levantar um conjunto de textos com suas principais características
estilísticas; esse conjunto deverá ser selecionado baseado em elementos
documentais; essa seleção será orientada por um método rigorosíssimo, com total
probabilidade de os poemas serem do autor; esse conjunto não seria um ÍNDICE
CANÔNICO (acabado), mas um ÍNDICE BÁSICO DE AUTORIA; e finalmente, Emmanuel
Pereira Filho termina elencando os pré-requisitos, para se instaurar o CÂNONE
LÍRICO DE CAMÕES: diz ele: “o estabelecimento crítico de cada texto terá de ser
feito isoladamente, pois a heterogeneidade da tradição documental e o
desconhecimento das fontes originais e mesmo arquetípicas assim o exigem,
fazendo com que seja uma falha de critério ecdótico qualquer tentativa de fixá-los
em conjunto”.
Então, seguindo os
caminhos abertos por Emmanuel Pereira Filho, Leodegário A. de Azevedo Filho irá
estabelecer este CÂNONE DA LÍRICA DE CAMÕES, com um árduo trabalho que durou quase
meio século, no campo do saber da crítica textual. Assim, Leodegário, meu
professor na UERJ, meu orientador nas minhas pesquisas acadêmicas e
institucionais, meu compadre e grande amigo atingiu seu objetivo, com muito
mais rigor ainda, deixando, contudo, inconclusa a sua magnífica obra, editada
pela Casa da Moeda de Portugal, atingindo o número expressivo de 9 volumes com
mais de oitocentas páginas cada um. Hoje não se pode realizar nenhum trabalho científico,
crítico-literário, sobre a obra lírica de Camões sem se referir às metodologias
desses trabalhos importantíssimos que realizaram esses dois pesquisadores
brasileiros no campo da ecdótica e da crítica textual nesta área específica.
Para que os senhores tenham um
pequeno conhecimento dessa gigantesca contribuição aos estudos camonianos,
mostraremos, como exemplo, um trabalho de análise textual num soneto,
decididamente, de Camões, segundo os critérios do duplo testemunho quinhentista
incontroverso e com apoio em manuscritos, estudados pelo Professor Leodegário.
Antes, gostaria de salientar, para maior
entendimento e clareza, que os primeiros passos dados pelo pesquisador nessa investigação
de tamanha envergadura foram no sentido de se delimitar o CORPUS LÍRICO DO
POETA no amplo e caótico universo textual que sempre fora ou não atribuído a
Camões, com ou sem motivos; com ou sem razões. É importante salientar, também,
que não existe nenhum autógrafo da lírica de Camões e o que dele nos chegou até
hoje são textos dispersos, manuscritos (trabalho de escribas) ou impressos.
Somente três poemas foram publicados em vida do poeta, embora haja duas edições
da sua lírica no século XVI, ambas póstumas: a de 1595 (RHYTHMAS) e a de 1598
(RIMAS): RH e RI, portanto.
Há uma longa história sobre os
editores dessas obras, e essa história é importantíssima para uma completa
visão sobre o assunto, o que não vou a isso me referir agora, por absoluta
falta de tempo e para não cansar esse auditório. Mas tanto em RH, como em RI
estão as origens da primeira tradição textual impressa, vinda dos cancioneiros
manuscritos. Esses manuscritos reproduzem por vezes, outros já perdidos, mas
conservam a tradição, mesmo, muitas vezes, partindo de cópias apógrafas. Assim,
só resta à Crítica Textual, a alternativa de reconstruir o seu protótipo ou
arquétipo com base nos cancioneiros manuscritos. A caça a cancioneiros
quinhentistas perdidos faz parte do trabalho abnegado dos exegetas, dos que
trabalham com os textos antigos em geral. Para poder concluir aqui essa singela
apresentação a respeito do fantástico trabalho do Prof. Leodegário sobre a
Lírica de Camões, mostraremos um exemplo
de como funciona uma análise textual e mostraremos que sua lírica está minada
pelo espírito Maneirista, pela ascensão da dúvida em sua visão de mudança do mundo
de sua época (renascimento). Mostrar que sua lírica está minada pelo dualismo
conceitual, portanto conflitual, da vido do homem pré-barroco, na dolorosa
tensão entre a carne e o espirito, envolvendo-o o descontentamento ou
desconcerto do mundo, que inquietam a lírica dos poetas desta fase. Poderemos
mostrar que sua lírica está minada também pelo conceito platônico de IDEIA que se
harmoniza com o conceito apriorístico de forma. Para entendermos os textos
líricos camonianos desta época não podemos esquecer que o Homem de então
resulta do binômio CORPO / ALMA e que, a partir, de padrões renascentistas de
gêneros clássicos, a poesia lírica de Camões se exprimirá em termos
maneiristas, em relação ao amor e à esperança perdida.
Segue o soneto:
Alma
minha gentil, que te partiste
tão
cedo deste corpo descontente,
repousa
tu nos Ceos eternamente,
e
viva eu cá na terra sempre triste.
Se
lá no assento etéreo, onde sobiste,
memória
deste mundo se consente,
não
te esqueças daquele amor ardente
que
já nos olhos meus tão puro viste.
E
se vires que pode merecer-te
algua cousa a dor que me ficou
da
mágoa, sem remédio, de perder-te,
pede
a Deos, que teus anos encurtou,
que
tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão
cedo dos meus olhos te levou.
Fontes
quinhentistas: PR – 10; CrB – 31; LF – 8v; M – 12; E – 36v; RH – 4v; RI -5v.
Fonte
básica: LF – 8v.
ABREVIATURAS
PR
– “Índice” do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro.
CrB
– Cancioneiro de Cristóvão Borges.
LF
– Cancioneiro de Luís Franco Correa.
M –
Cancioneiro de Madrid.
E –
Cancioneiro da Biblioteca do Escorial.
RH
– Rhythmas, primeira edição, de 1595.
RI
– Rimas, segunda edição, de 1598.
NOTA: O "u" da palavra "algua" recebe um til (~). Não foi possível grafar com esse sinal indicador da nasalidade, por motivos técnicos
ANÁLISE TEXTUAL DE LEODEGÁRIO A. DE AZEVEDO FILHO
"A tradição impressa, a partir do
segundo verso (tão cedo deste corpo
descontente), uniformizou o uso da palavra VIDA, empobrecendo o vocábulo do
soneto: “tão cedo desta vida descontente”. Muito provavelmente, entretanto, aí
se tem o CORPO e não a VIDA, como se tem MUNDO no sexto verso e não VIDA
(memória deste mundo se consente). O substantivo CORPO, em sentido
filosófico-religioso, refere-se à matéria de que todos somos constituídos, em
oposição à alma, nossa parte imaterial. A partir do Maneirismo, começa a
desarticular-se a harmonia clássica existente entre os dois termos do binômio CORPO
e ALMA, numa tensão que iria chegar às últimas consequências no Barroco".
ATÉ A PRÓXIMA
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