Mattoso
Câmara Jr., em seu Dicionário de
Linguística e Gramática, nos diz que CACÓFATO é toda cacofonia em que há
sugestão de palavras descabidas ou inconvenientes, em virtude do encontro de
vocábulos num mesmo grupo de força, onde não há pausa intercorrente. E continua
o eminente linguista brasileiro: “O cacófato está latente em muitos
agrupamentos vocabulares, normais e até inevitáveis”. E cita como exemplos: “ela tinha”; “não passa disso” e muitos outros. Antenor Nascentes também dizia que há
cacófatos inevitáveis e que não se deve ter vergonha de se pronunciar
expressões como “na vez passada”; “o time dele nunca ganhou de ninguém” e
outras sentenças desse tipo. Contudo, o mestre filólogo do Idioma Nacional, não aceitava todas essas estranhas sonoridades na
língua escrita, deixando claro, então, que a língua é uma pluralidade de “paroles”
à disposição do sujeito falante, devendo este saber usá-las com estilo e
correção. Pegando o gancho da dicotomia
saussuriana, “langue” X “parole”, é importante ressaltar, também, que existe, a
partir do elemento grego KACÓS, É, ÓN, mau, ruim, o termo CACOGRAFIA, CACO +
GRAFIA, por influência do francês CACOGRAPHIE.
A cacografia é a grafia errônea dos vocábulos. É um barbarismo
ortográfico, que ocorre na escrita dos semialfabetizados. Ocorre, também, na
escrita de pessoas com pouca leitura e instrução e aparece na escrita de
pessoas que ainda escrevem pelas regras de uma ortografia já fora de uso ou,
ainda, por hábito, ou por convicção. Antenor Nascentes dizia em suas aulas (e
mantinha o que dizia em suas obras) que escrevia sem respeitar os Acordos
Ortográficos (principalmente as regras de acentuação) em vigor na sua época, por
convicção e respeito aos estudos e pesquisas filológicas que realizava. Mas
voltando ao CACÓFATO, lembrei-me do primeiro verso do conhecido soneto atribuído
a Camões, que inicia assim: “Alma minha
gentil, que te partiste”. Durante minhas atividades de professor de Língua
e Literatura tive de responder a indagações de alunos e de amigos de outras
áreas do conhecimento, a respeito do grupo de força que inicia o soneto 2 (13 –
19) de RH – Rhythmas, primeira edição, de 1595, (RI – Rimas, segunda edição, de
1598). Na realidade, Camões não cometeu nenhum cacófato. Então o que acontece? Trata-se
de um “cacófato sincrônico”, a posteriori, e nunca “diacrônico”, pois no século
XVI não existia ainda, na Língua Portuguesa, a palavra MAMINHA, que, segundo
Antônio Houaiss (Dicionário da Língua Portuguesa), só tem registro escrito, em
português, no Século XVIII (1789, MS ¹), com o significado de mama pequena, mamilo. Como o soneto tradicionalmente atribuído a Camões
é um dos mais conhecidos e belos atribuído ao vate português, em seu caminho à
suntuosidade conflitual do barroco, vamos mostrar a pequena análise textual
feita sobre ele pelo eminente Professor Leodegário A. de Azevedo Filho, um dos
maiores estudiosos da lírica camoniana em todos os tempos. Antes de apresentar o poema, é bom lembrar que
não existe nenhum autógrafo de Camões em seus poemas em RH e em RI, pois suas
composições líricas foram editadas depois de sua morte. Leodegário Azevedo
Filho, debruçando-se por mais de 30 anos sobre a lírica camoniana, estabeleceu,
cientificamente, o problema da autoria, publicando sua tese em mais de 9 extensos volumes,
editados pela Casa da Moeda de Portugal. Hoje, sua teoria é aceita por quase toda
crítica especializada do mundo todo.
Eis o poema:
Alma minha
gentil, que te partiste
tão cedo
deste corpo descontente,
repousa tu
nos Ceos eternamente,
e viva eu cá
na terra sempre triste.
Se lá no
assento etéreo, onde sobiste,
memória
deste mundo se consente,
não te
esqueças daquele amor ardente
que já nos
olhos meus tão puro viste.
E se vires
que pode merecer-te
algua cousa a dor que me ficou
da mágoa,
sem remédio, de perder-te,
pede a Deos,
que teus anos encurtou,
que tão cedo
de cá me leve a ver-te,
quão cedo
dos meus olhos te levou.
Fontes quinhentistas:
PR – 10; CrB – 31; LF – 8v; M – 12; E – 36v; RH – 4v; RI -5v.
Fonte básica: LF – 8v.
ABREVIATURAS
PR – “Índice” do
Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro.
CrB – Cancioneiro de
Cristóvão Borges.
LF – Cancioneiro de
Luís Franco Correa.
M – Cancioneiro de
Madrid.
E – Cancioneiro da
Biblioteca do Escorial.
RH – Rhythmas,
primeira edição, de 1595.
RI – Rimas, segunda
edição, de 1598.
Eis a análise:
A tradição impressa, a partir do segundo verso (tão cedo
deste corpo descontente), uniformizou o uso da palavra VIDA, empobrecendo o
vocábulo do soneto: “tão cedo desta vida
descontente”. Muito provavelmente, entretanto, aí se tem o CORPO e não a VIDA,
como se tem MUNDO no sexto verso e não VIDA (memória deste mundo se consente). O substantivo CORPO, em sentido
filosófico-religioso, refere-se à matéria de que todos somos constituídos, em
oposição à alma, nossa parte imaterial. A partir do Maneirismo, começa a
desarticular-se a harmonia clássica existente entre os dois termos do binômio
CORPO e ALMA, numa tensão que iria chegar às últimas consequências no Barroco.
ATÉ A PRÓXIMA
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