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30 de março de 2020

MISTÉRIOS DE DEUS (2)




Realmente existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado, em solidão. Somos uma espécie social e dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado.
Não vou contrariar, agora, os mais significativos doutores das ciências sociais e muitos entusiasmados psicólogos das mais avançadas linhas francesas, de viés psicanalítico, pois deixei os grandes centros em que atuava no meio de verdadeiras multidões, vivendo em ambientes repletos das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagiam comigo, para vir para o campo, para juntar-me aos cantos dos pássaros e aos mugidos do bom e sadio gado gordo, que pasta nas relvas dos campos. Mas sinto-me, hoje, como já me sentia outrora, solitário, muitas vezes. Aposentado, escolhi a paz da cidade do interior, rodeada de fazendas, com suas imensas voçorocas dentro de íngremes terrenos, transformados em pastos de poucos animais e muitos cupinzeiros.
Mas faz parte da vida envelhecer. Não um envelhecer sem propósitos, como estação terminal de uma breve viagem, mas um envelhecer com um significado robusto que justifique a alegria de se sentir útil, nem que seja para se lamentar em missivas tristes, às vezes indecifráveis, sem estilo e, possivelmente, até sem destinatário. O importante é conviver, interagindo com o próximo de qualquer forma, pois a solidão é amedrontadora e poucos sabem como lidar com ela.
Contudo, às vezes sozinho, nessas regiões isoladas, ela – a solidão – me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho de apartamento não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas, que mal sabem conjugar um verbo irregular de sua língua natal, não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras da venda, refugio-me sempre em meu quarto de leitura. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante muitos textos de transgressão a todas as normas possíveis e imagináveis, além de me deliciar, o que é maravilhoso, narcisicamente com isso. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas há outra, mais amedrontadora, até doentia. Fujamos dela. A vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Vivendo, aprendi a afastar todo o tormento que nos isola e que nos aprisiona. Mas aprendi, por outro lado, a viver a talvez gostosa dualidade pós-barroca, que projeta a alegria de viver em grupo de equivalentes e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, por pura incompreensão dos fatos, ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. Mesmo agora um tanto isolado, procuro sempre alguém para confirmar se estou vivo mesmo. Por isso escrevo, na ânsia de conseguir uma publicação futura e ser, pelo menos, lembrado. Eis, novamente Narciso enfrentando Tânatos...
Mas a vida de quem já muito viveu é mesmo misteriosa, quando criadora de situações dicotômicas. Para que ela seja digna tem de ser entendida e respeitada pelo outro. Todos nós temos de saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta, mas que também mata, porque deprime. Saber viver nesses limites é um mistério e é para poucos a sua compreensão. Preparamo-nos para viver em grandes grupos e, agora, temos de sobreviver em regiões de pouca densidade demográfica. Isso é desafiador! Mas é bom experimentar tudo, sem esquecer que a vida exige e reclama por muita atenção, pois somos o que o outro deseja que sejamos. Mas em quaisquer situações, adoramos ser úteis, pois “só o homem valoriza a utilidade.” Li isso num jornalzinho que circulava num asilo para idosos, ao visitar um parente de meu pai, um tal de Fernando, pessoa incrível, que lá, sozinho, ficava sentado o dia todo, fitando abstratamente o infinito... Nunca mais esqueci.
Os mistérios da vida não foram explicados nas escolas regulares, por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios, os mistérios da vida, pertencem a um outro sistema simbólico, não se iludam!
Numa tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, lembrei-me da visita que fiz, há muitos anos, à românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga. Lá, depois de percorrer os silenciosos corredores de pedras escuras, com artes de todas as épocas, penduradas nas paredes descascadas, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele cansado funcionário, já idoso, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava só, num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando comigo por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente, de cor, todas aquelas estórias escritas resumidamente nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior sagrado daquele templo bracarense, respondeu-me, sentindo-se realmente útil, verbalizando o seu pensamento interior, na única vez em que solicitei dele uma opinião própria – disse-me a triste figura macilenta- , que aquilo representava um mistério de Deus. E transformando-se, alegre, feliz e catártico, em comoção intensa, gritou contente, cumprindo sua missão de guia: - “Mistérios de Deus! Mistérios de Deus!”
E naquela tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, voltei para o meu recolhimento, pensando que poderia me libertar daquela imensa solidão gótico-românica, condenada à acédia melancólica, que nos envolvera. Era como dizia o poeta mais carioca do que paulista: “tristeza não tem fim, felicidade, sim...

ATÉ A PRÓXIMA

28 de março de 2020

DISCURSO VIRAL






Há algum tempo, escrevi uma crônica, intitulada FUTEBOL, RÁDIO E TELEVISÃO. Ela começava assim:

Vocês estão lembrados como eram as transmissões dos jogos de futebol pelo rádio e pela televisão, antigamente?
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Então, vejamos como esses dois veículos de comunicação de massa falam, ou melhor, trabalham.
O Rádio
Ouvir rádio é imaginar como os fatos estão acontecendo. Todas as informações nos atingem por um único canal: a audição. Temos que ficar atentos a tudo, para não perdermos os sinais chaves da emissão.
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A Televisão
Ela é um meio frio de comunicação de massa, porque fornece baixa quantidade de informação, pois permite mais participação ao propor somente uma complementação informativa e inclui o receptor na própria mensagem, como um reflexo das ocorrências de suas realidades e experiências cotidianas.

Hoje, na reclusão imposta pelo bom senso e pelas autoridades sanitárias, por causa dessa pandemia, causada pelo Coronavírus, estamos enclausurados, e as informações nos atingem também pelo rádio e pela televisão. Bem, é mais ou menos isso, porque pela internet passa tanto o som, quanto a imagem, que nossos aparelhos receptores, os moderníssimos celulares, captam ambos, ou só o som, colocando-nos informados. Informados? Bem Quando você informa demais, você desinforma. Regrinha básica da Teoria da Comunicação.

Dentro de casa, não há como ficarmos sem nenhuma comunicação com o mundo exterior, ou melhor, sem o nosso celular ligadíssimo nos noticiários que surgem nos sonoros vídeos, onde pessoas ligadas aos fatos e políticos ávidos por audiência, discutem sobre esse famigerado COVID-19. São milhares de informações que nos atingem, tentando explicar o que é, de como surgiu e como pode ser evitada tamanha tragédia. Há de tudo. Posições médicas e discursos políticos, que se colocam contra ou a favor desse lastimável estado de crise por que passamos todos nós. Recolhidos em nossas casas, somos receptores passivos, com poucos canais de retroalimentação, mas, nem por isso, deixamos de nos manifestar, pois a internet nos proporcionou esse feedback, ausente até pouco tempo, mas isso nos tornou comentaristas independentes e passaram a proliferar, por ondas hertzianas,  discursos, os mais estapafúrdios possíveis, na grande rede aberta da Web.

Mesmo com o celular na mão, olho na minúscula telinha desse aparelho quase mágico, de última geração, não há como deixar de dar uma espiadinha também na tevê da sala, uma gigantesca tela de 50 polegadas, resolução 3840x2160, painel RGB, de 8 bits, com vídeo em frequência de tela MR, HDR, com mega contraste, PurColor, contrast Enhancer, Auto Motion Plus, modo filme, Dolby Digital Plus, Multiroom Link, Smart Service, Navegador Web Browser, Bluetooth Low Energy e, aimda por cima, bem fininha...
É impossível desprezar a tecnologia da informação. E nesse mundo cibernético, principalmente na atuação das mensagens via internet (áudio e imagem de alta e baixa saturação), nós todos exercitamos, a todo instante, juntamente com a tentativa de decodificação das mensagens, a nossa capacidade de abstrair, tentando separar pelo pensamento o que não está separado no objeto do pensamento. Portanto, essa ação de abstrair, quando negada, torna-se um elemento impeditivo da compreensão da mensagem. Assim, lança-se mão da redundância, para eliminar a entropia. Observa-se isso, facilmente, nos campos de futebol, quando o ouvinte assiste aos jogos com o radinho de pilha colado ao ouvido, escutando o que seus olhos veem. Da mesma forma, tomamos conhecimento dos fatos narrados pelos repórteres de rua, sobre a pandemia do coronavirus, que têm suas informações discutidas por “ancoras” nos estúdios das emissoras de televisão. Estes comentam os comentários deles, numa sopa de letrinhas que correm no rodapé do écran, temperada com metalinguagens e redundâncias, para evitar entropias, surgindo assim, imediatamente, como corretora, uma neguentropia, percebida nos discursos de protesto ou de concordâncias, por parte dos telespectadores distantes. Todavia, o mais importante fato que surge dessa fenomenologia televisiva é que a ansiedade de ouvir supera a obrigatoriedade de ver, como se a voz do outro (âncora da emissora), vinda  do interior do estúdio colorido e misterioso, um oráculo eletrônico, fosse a expressão suprema da verdade (discurso do Mestre), deixando o receptor à mercê de um entendimento impossível de ser alcançado por sua própria capacidade de reflexão e de abstração. Está, assim, preparado o discurso ideológico que, a partir desse momento, agirá também neguentropicamente, para corrigir uma possível falta de comunicação interpessoal. O receptor dessas mensagens passa a ser um súdito dependente desse meio, pelo discurso do âncora e, ao mesmo tempo, um repetidor passivo de seus pensamentos.

O vírus continua atacando, mas os discursos que o sustentam, não devem ser mais perniciosos do que ele. É o que esperamos.

ATÉ A PRÓXIMA


24 de março de 2020

TODOS SOMOS ANACORETAS


Saí do mundo e segui
no rabo de um cometa.
Desse vírus eu fugi
e virei anacoreta.


Depois de uma bobagem em forma de versos, em redondilha maior, para animar a festa, vamos falar de alguma coisa mais séria. Vamos lá. Se você for ao GOOGLE, vai ficar sabendo que os anacoretas eram monges cristãos ou eremitas que viveram em retiro solitário, nos primórdios do cristianismo e, mais tarde, dedicaram-se à oração e à produção de textos litúrgicos, para com isso alcançar um estado de graça e pureza, através da contemplação.
Muito bem, mas o que significa essa palavra, desconhecida de muita gente? Anacoreta vem do grego, άηαϏωρετής, solitário, eremita (do grego, έρηϻιτης), o que se retira (do mundo).
Os anacoretas, então, eram monges cristãos que viveram em retiro. O termo anacoreta também é utilizado para chamar um penitente que se afastou do convívio humano para viver em solidão. Ele participava da liturgia, ouvindo o serviço e recebia a sagrada comunhão.
Além dos anacoretas, existiam também os cenobitas, cristãos eremitas, que rezavam e lutavam contra o demônio, em profundas meditações... Lutavam dentro e fora dos mosteiros, nos desertos, em retiros e mesmo em batalhas. Eram adestrados e estavam preparados para as lutas, aptos para combater com as próprias mãos e poucas armas os que renegavam a fé divina. Lutavam contra os vícios da carne e dos pensamentos, mas se relacionavam em grupos, diferente dos anacoretas, e juntos oravam e praticavam atos nem sempre, talvez, santos...
Cenobita é outra palavra pouco usada em nossa língua e também veio do grego Ϗοινόβιον, através do latim 
coenobium, aquele que habitava o convento.
Antes de continuarmos, é importante salientar que essas duas palavras, anacoreta e cenobita são vocábulos pouco produtivos em nossa língua. Produtivos significa que não são muitos os vocábulos que deles derivam. Vejamos: a) do grego άηαϏωρετής temos: anacoreta, anacorético, anacoretismo; b) do grego Ϗοινόβιον temos: cenobita, cenobiarca, cenóbio, cenobial. Todos esses vocábulos entraram em nossa língua por via erudita, isto é, com mínima ou nenhuma alteração fonética em sua evolução. Quando um termo entra em nossa língua, sofrendo algumas alterações fonéticas, diz-se que a via foi popular. Há casos em que vocábulos, presos a um mesmo radical exterior, entraram em nossa língua, uns por via popular e outros por via erudita. Tomemos os exemplos. Latim lacte: por via popular, temos, leite. Por via erudita, temos lactante. Latim paupere: por via popular, temos pobre. Por via erudita, temos paupérrimo.
Uma interessante visão da retomada do espaço acústico sensorial dos tempos primitivos, os primórdios do cristianismo, é a de Marcelo Molnar, que compara os aficionados jovens de hoje, presos a seus celulares, com os anacoretas medievais, recolhidos a um intimismo quase doentio, através de suas parafernálias eletrônicas, ouvindo seus ritmos preferidos e isolados do mundo. 
Marshall McLuhan desenvolveu tese nesse sentido, muito antes, nos anos 60, estudando o processo da comunicação. Mas , continuando. Na mesma linha de raciocínio, os cenobitas de antanho, monges que se misturavam entre si, nas práticas litúrgicas dos conventos, como já dissemos, teriam,  como atuais seus representantes, esses mesmos jovens (e alguns velhos), que fofocam nas Redes Sociais dessa maravilha internética.
Muito interessante como o tempo passa, o mundo gira e as coisas se repetem. Esse frenesi que causa em todos nós a tecnologia eletrônica do mundo cibernético, nos distrai dentro das clausuras de nossas casas, transformadas em conventos, e nós em anacoretas, trazendo um pouco de prazer, nesses dias de recolhimento forçado, não por amor a Deus, mas por medo de ir mais cedo prestar contas a Ele!
Créditos:
1) www.molnar09.wordpress.com/2010/03/23/cenobitas;
2) NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955;
3) YARZA, Florencio I. Sebastián. Diccionário Grieco-Español, Ed. Ramón Sopena, S.A., Barcelona, 1954.

ATÉ A PRÓXIMA

16 de março de 2020

PROFESSOR DE FELICIDADE





Vou falar na primeira pessoa, porque a mentira nunca vem em primeiro lugar em qualquer narrativa. Ela vem, muitas vezes dissimulada, lá no fim da história. Às vezes, no meio. O que vou narrar são fragmentos de uma vida dedicada ao ensino, verdadeiramente. Atividades dentro de salas de aula, durante muitos anos...
Há mais de 60 anos eu inovava em sala de aula, tentando dar aulas diferentes. Minhas novidades pedagógicas surgiram muito antes da Lei 5697, de 1972. Aboli, definitivamente, as notas, substituindo-as por conceitos. Quem foi meu aluno, nesse tempo, deve ainda lembrar daqueles desenhos em forma de notas. Figurinhas motivacionais servindo de conceitos, que se encaixavam na faixa etária das primeiras séries do então Curso Ginasial. Ficaram famosos, entre a gurizada, ei-los: Porquinho Rindo; Porquinho Sério; Porquinho Triste e Porquinho Desesperado. Não havia correspondência entre estes termos linguísticos e os números. Era só isso, mesmo. Os alunos pareciam que gostavam da minha avaliação e percebiam que com um bom desempenho na avaliação, todos ficavam felizes, e como sorriam... mas ao receberem um desenho de porquinhos aflitos, agitados, percebiam, também, que o tal Porquinho Desesperado não era lá mesmo uma boa coisa. Evidentemente, aquilo era o resultado de algo nada interessante para a sua vida escolar. E ficavam tristes. Mas a tristeza passava rápido, porque, olhando para a figura dos porquinhos desesperados, ingenuamente riam e a ludicidade daquele ícone não agredia como os numerais 1, 2 e ZERO. De fato, ninguém queria ter uma coleção desses suínos... mas que eles eram bonitinhos, eram, sim! Em sua ingenuidade, chegavam a interpretar aquilo como uma brincadeira. Aquelas crianças aceitavam essa nova forma de materializar um desempenho escolar - estou certo disso - porque a nota em forma de desenho, uma quase brincadeira mesmo, representava, no fundo, no fundo, o seu desempenho nas provas e a sua dedicação aos estudos. De fato, havia embutido nos conceitos, um valor, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Um troféu gostoso, lúdico, para o desempenho de cada um. Nada de destruir a participação do aluno, muitas vezes criativa, nas tarefas propostas, com palavras incompreensíveis, sem censura, sem rabiscos alusivos aos erros ou equívocos. Eu não rabiscava a prova de meu aluno. Nada disso. Evidentemente, não valorizávamos, também, o erro.
Abolimos, em seguida, o uso do terno e gravata como uniforme do professor em sala de aula, substituindo-o pelo jaleco branco. Fiquei até parecido com médico. Foi uma atitude unilateral, passível de repreensão, eu sei, mas o calor de 40° da Cidade Maravilhosa, em seus verões de arrepiar, falou mais alto... Abolimos, logo depois, o uso do livro didático em sala de aula e sofremos a fúria das editoras especializadas. Passamos a usar qualquer jornal do dia, sem exigir nenhum, em especial. Tentávamos fazer com que o aluno adquirisse o hábito de comprar e ler jornal, mesmo em dia de recesso, feriados, fins de semana e férias... Pouca coisa? Creio que não. Eles participaram, pela primeira vez, de uma relação comercial e aprenderam a gostar de ler. Todos gostavam de ler, nos jornais, a seção das Histórias em Quadrinhos, um “entre lugar”, dividido com a literatura e o cinema. Nunca eles haviam comprado alguma coisa sadia, para consumo próprio. Estavam comprando e consumindo informações e notícias, as mais variadas possíveis, a primeira parcela de uma enorme conta de somar, na contabilidade da vida, formando, cada um, o seu repertório cultural. Muitos aprimoravam, com o jornaleiro da esquina da escola, a sua matemática, pois ficavam atentos ao troco, quando a nota ou a moeda era de valor maior do que o jornal do dia. O próximo passo foi abolir o tradicional quadro-negro, onde se escrevia qualquer bobagem. Só o usávamos para a fixação da aprendizagem. Creio que pela primeira vez se utilizou, em colégio público, nas aulas de Língua Portuguesa, material tão, aparentemente, incompatível com fonemas, sílabas, classes de palavra, conjugações, vozes verbais, figuras de sintaxe, polifonia, metafonia. Tudo era misturado a muita alegria e satisfação. Passamos também a usar cola plástica, tesoura, barbante, papel de mimeógrafo, recortando as notícias do dia, interpretando-as e com elas partindo para a leitura e para as análises de todos os tipos programáticos, montando até um novo jornal, deixando a sala imunda para o professor seguinte de outra matéria, que me substituiria. Como isso deu trabalho aos serventes! Depois de algum tempo e muitas reclamações, as aulas de Língua Portuguesa passaram a ter mais alguns minutos de duração e foram colocadas nos últimos seguimentos do horário do dia, fechando o turno da manhã, para faxina geral. Ocorreu, então, mais uma aceleração pedagógica, inovadora, com reflexos futuros, pois as aulas de Curso Ginasial passaram a ter 100 minutos de duração. Estas foram algumas atitudes pedagógicas tomadas há mais de 60 anos, em escolas públicas oficiais, sob a responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara, hoje, Estado do Rio de Janeiro. Sabem em que colégio tudo isso começou? Nada mais, nada menos que no maior colégio do Rio de Janeiro, na época: o Instituto de Educação, aquele mesmo! Aquele prédio lindíssimo, em estilo barroco mexicano, na Rua Mariz e Barros, 273, entre a Praça da Bandeira e a Tijuca, que formava as nossas professorinhas primárias, com diminutivo afetivo e tudo. Pelo que fizemos, quase apanhamos das mães dos pequeninos alunos que não entenderam imediatamente o que estava acontecendo. A Direção queria me expulsar do magistério. Lutei bravamente, numa época difícil de regime político de exceção, mas consegui não ser penalizado e, de certa forma foi reconhecido, saindo até vitoriosa a minha teoria revolucionária de motivação na aprendizagem. Se fomos seguidos? Não importa. O que importa é que fomos reconhecidos, não imediatamente, pois a educação é um processo, lento e contínuo. Não existem frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer...
Depois do Instituto de Educação fomos trabalhar no Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, no subúrbio da Leopoldina, na Penha. Lá também inovamos. Criamos a primeira radioescola do Brasil, em colégio público de Nível Médio, graças à compreensão de seu diretor, um professor fabuloso, um homem de bem, de fina sensibilidade, filólogo e poeta. O Professor Jairo Dias de Carvalho, que já não está entre nós, tornou-se meu grande amigo, desde os bancos escolares da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Jairo Dias de Carvalho dirigiu o Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade com saber, dignidade, patriotismo e democracia plena, em tempos muito difíceis, de estado de exceção conflagrado institucionalmente. Recebeu com todo respeito e atenção meu projeto inovador de Comunicação Pedagógica, implantando no colégio que dirigia, a Radioescola Gomes Freire de Andrade. O empreendimento foi reconhecido pelo Secretário de Estado de Educação, na época, Celso Octávio do Prado Kelly, pai do João Roberto Kelly, o músico carnavalesco de marchinhas irreverentes, estão lembrados?
De lá saí para o Colégio Estadual Barão do Rio Branco, na última estação do trem da Central do Brasil, bem depois de Campo Grande. Ficava no Matadouro de Santa Cruz. Lá, introduzimos a semente dos festivais de música e poemas escolares, numa “mistureba” cultural de shows e poesia. Além disso, construímos, com recursos próprios, uma sala especial de Latim. Isso mesmo, Latim. Parecia uma sala de museu. Gastei meus parcos recursos. Suados cruzeiros, cruzados e muitas novas moedas das quais não mais lembro seus nomes, nem delas tenho saudade. Mas tudo em educação, se não tiver muito amor, comprometimento, conscientização e prática contínua, se esvai como água entre os dedos e a sede do saber não satisfaz o desejo de se crescer intelectualmente. Lutei, lutei muito. Coloquei em livretos todas essas experiências, que o editor, Lúcio de Abreu, da Editora Gernasa, publicou para orgulho meu. Lúcio de Abreu foi um arauto da boa e inovadora educação; um grande amigo, que também já se foi e a quem muito devo, por acreditar nas “maluquices" de um jovem e inquieto e iniciante professor. Nunca acreditei que somente o cuspe e giz pudessem servir para muita coisa dentro de uma sala de aula. Pois é, existe ainda no Brasil uma grande defasagem entre o que o aluno espera da escola e aquilo que ela o oferece. É verdade. Desenvolvi esse tema também em um livreto da Editora do Lúcio de Abreu. Do meu bom amigo Lúcio...
Se estes fragmentos memoriais vão servir para alguma coisa, não sei dizer. Sei que enquanto me lembrar do que fiz de bom, de útil e correto vou registrando, antes que as nuvens negras da tempestade cerebral descarreguem seus raios fúlgidos, mas trágicos, em minha cansada memória e apague tudo. Nessa época atual, em que a figura do professor está tão desprestigiada, sirva essa voz tosca de um mestre-escola, para mostrar que ensinar é ainda a mais nobre de todas as profissões. Assim, entendo e sempre entendi que o professor tem de ser mestre do absurdo, porque só os grandes impactos constroem, enquanto as pequeninas coisas, sempre repetidas, decoradas, corroem, enjoam e estragam a nossa vida, a vida de todos nós, a vida do homem comum, a vida de nossos alunos. Todos nós precisamos e, o aluno, em particular, precisa de felicidade para viver, desenvolvendo-se confiante. É dever do professor abastecer essa demanda. O professor, antes de tudo deve ser professor de felicidade.

ATÉ A PRÓXIMA

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Quem sou eu

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.