Falar
sobre Cruz e Sousa é falar sobre o maior poeta do Simbolismo Brasileiro. Serei breve e simples,
mais para manter vivo os registros de crítica literária, que nessas minhas páginas
da rede social faço, com certa periodicidade, do que para dar à poesia simbolista do autor de Broquéis, um trabalho crítico de grande valor, pois para tanto, faltam-me engenho e arte. De qualquer forma, peço a paciência do leitor, porque o tema é novo. Tentarei,
então, apresentar uma pequena análise crítica de sua poesia, focando um determinado viés de sua construção poética, entre inúmeros
outros possíveis. Aqui, uma análise fônica.
Todo
texto ou escritura denuncia algo. É só procurar com as lentes da microanálise.
Com o artifício da análise estilística pode-se mostrar por dentro a alma de um poeta.
Vamos, então, procurar as combinações dos fonemas que estruturam os versos,
proporcionando as mais significativas formas expressivas de um texto poético.
Mas tudo isso na estrutura da investigação latente do texto. E como atingimos o
latente? Através de análises especiais. Analisar é separar as partes do todo, é
um processo de deslocamentos de inúmeras partes do discurso, pois há muitos
conteúdos que se prendem ao texto, à sua estrutura fônica, à sua estrutura
mórfica, à sua estrutura sintática e tudo isso pode denunciar, ou melhor, pode
explicar um estilo ou um sentido estilístico, algo que se localiza muito além
do literário. Traumas de vida podem ou não aparecer nos textos de um autor.
Vicissitudes de uma existência inteira, carregada de infortúnios e desgraças,
além de características de uma etnia, impregnadas na ”langue”, por exemplo,
podem marcar a “parole” poética de um poeta, e seu discurso evoluirá
esteticamente, consubstanciando-se, assim, o artístico. Já a arte, contudo,
será o resultado da observação dessa materialização pelo receptor, uma vez que
é nele que está centrada a mensagem transfiguradora da realidade. Com esse
espírito investigativo, fomos encontrar em Joaquim Ribeiro, no seu livro Estética da Língua Portuguesa, uma
hipótese sobre a possibilidade de ter sido a poesia de Cruz e Sousa
influenciada linguisticamente por suas origens, isto é, por uma herança étnica:
a língua Banto, africana. Para tal, no Capítulo V dessa preciosa obra, o autor
nos brinda com um artigo intitulado Vestígio da Concordância Banto no Estilo
de Cruz e Souza, onde o ilustre filólogo, que ocupou a Cadeira 33 da
Academia Brasileira de Filologia, da qual muito me orgulho de também pertencer,
afirma que “não será desarrazoado
modificar, em certos casos, a velha definição buffoniana. O estilo muitas vezes
é mais do que o homem. O estilo é a raça, com o equipamento cultural”.
Acredito
que Joaquim Ribeiro esteja correto, pois é impossível separar Cruz e Sousa de
sua herança étnica. Se assim aceitarmos essa colocação, podemos dizer que há
elementos bem significativamente raciais na poesia e na prosa de nosso maior
poeta simbolista.
O
autor da Estética da Língua Portuguesa
procurou na linguagem poética de Cruz e Sousa alguma coisa a mais em seu estilo
que traísse sua ascendência racial. O que mais chamou a atenção do insigne
pesquisador foi a abundância das aliterações, recurso que Cruz e Sousa usa e
delas abusa. As aliterações são formas
de se construir as frases, os versos, os parágrafos, enfim, um texto com a
repetição da mesma consoante inicial, no sentido de tentar quebrar a
arbitrariedade do signo linguístico, quando teremos uma forma imitativa ideal e
nunca real, ou quando se tem a proposta de obtermos formas lúdicas, onde os
sons repetidos nos diversos vocábulos proporcionam uma enorme sonoridade e
musicalidade ao texto, sempre evocando, sempre sugerindo. Quando a repetição
dos fonemas iniciais dos vocábulos se dá por variação cognata, ou quando os fonemas
repetidos são homorgânicos, ocorre o fenômeno conhecido na estilística fonética
como coliteração. Aliás, as variações consonânticas de fonemas, que dão ao
verso um ritmo significativo e ímpar, foram estudadas no verso moderno, muito
tempo depois de Cruz e Sousa, por dois grandes autores, um norte-americano,
Kenneth Burke, e outro brasileiro, Oswaldino Marques.
Joaquim
Ribeiro vê nas aliterações dos textos de Cruz e Sousa “uma sobrevivência de cunho racial, vestígio de uma concordância
aliterativa, própria das línguas bantos”. O linguista e filólogo pesquisador se vale
dos estudos sobre a língua Banto, realizados por Bentley, conceituado
africanólogo, para mostrar que os bantos da África possuíam uma primitiva
gramática, cuja concordância aliterativa é um fato significativo de sua
estrutura fraseológica, portanto um traço linguístico pertinente, pois
estabelece uma oposição significativa.
Observemos o exemplo
apresentado por Bentley:
“O matadi mama mampembe mampewa i mam mama twamwene”.
O prefixo -ma-
que aparece no substantivo -matadi- aparece obrigatoriamente nos
adjetivos, verbos e pronomes que ao substantivo se referem: mama, mampembe, mama etc.
João
Ribeiro, o grande historiador, folclorista, filólogo e erudito homem dos temas humanísticos, da Academia Brasileira
de Letras e pai de Joaquim Ribeiro, aponta reminiscências dessa sintaxe também
no linguajar dos antigos escravos aqui no Brasil, em situações como:
“Z’ êre z’mandou z’dizê” = Ele mandou dizer.
Acrescentamos nós que,
igualmente, encontramos essa forma de falar, com idêntica sintaxe, nos
terreiros de candomblé. Assim:
“Z’ êre é mi z’fio” = Ele
é meu filho, no linguajar de muitos pais-de-santo, que ainda hoje existem na
Bahia e em diversos outros Estados brasileiros.
Em Santa Catarina, mais precisamente no vale
do rio Camboriú, de acordo com o historiador e folclorista Isaque de Borba
Corrêa, em seu livro Poranduba Papa-Siri,
ano 2000, apresenta-nos os seguintes falares de negros da região, em suas
festivas cantigas:
“Já jivou, jinêga, jinão tenho jibatêra” = Já vou, nega,
não tenho batera.
“Jiondistá meu jifacão,
ondistá meu facão ? / Caiu lá na jabobêra, caiu lá na jabobêra!”
= Onde está o meu facão, onde está o meu facão? / Caiu lá na aboboreira, caiu
lá na aboboreira!
“Jecaldo de cana, jefrutas,
jebananas” = Caldo de cana, frutas e
bananas.
Lembramos
ainda, que línguas em formação, historicamente apresentam fenômeno parecido, na
mesma linha fonética e até fonológica, como é o caso do Latim, que na antiquíssima inscrição da “fíbula prenestina”, deixou gravada a
inscrição: MANIOS FEFACIT NUMOSIOI =
Manios fez para Numósio. O fenômeno fonético e, neste caso, também fonológico,
pois aponta para uma marca morfológica, diferenciadora de tempo verbal se chama
reduplicação, uma repetição da sílaba inicial do verbo, com variação vocálica,
marcando o pretérito perfeito (FEFACIT),
o que não deixa de ser uma forma de aliteração interna.
Observa-se,
outrossim, que a linguagem tautológica infantil, primitiva por excelência, em
relação à história do sujeito falante, é, em muitos casos, reduplicativa e
aliterativa.
Mas
voltando aos versos de Cruz e Sousa, podemos neles ver essa tendência
aliterativa da língua dos bantos, sendo que na poesia do vate catarinense, isso
ocorre exclusivamente em forma de um recurso estilístico.
Vejamos
algumas concordâncias aliterativas em Cruz e Sousa:
“Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias de violões, vozes veladas,
vagam nos velhos, vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas... “
(In, “Poesias”, 189);
“ricos
e raros resplandesceram”
(In, “Poesias”, 43);
“a cor
cantava-me nos olhos”
(In, “Prosa”, 426);
ALITERAÇÃO DE SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS
EM SUBORDINAÇÃO
“mole e morna melopéia” (In
“Poesia”, 195);
“tantálica tentação de seus
braços tentaculosos” (In, Poesia”, 194);
“verde, viva e viçosa
vegetação dos vergeis virgens” (In, Poesia”, 145);
“pomos pomposos de pasmo
sensibilizantes” (In, Poesia”, 391);
“finos frascos facetados” (In,
Poesia”, 125);
“força fina e fria” (In, Poesia”, 26);
“brusco e bronco biombo” (In,
Poesia”, 94);
“soberbos e solenes soberanos”
(In, Poesia”, 28);
“raras rosas” (In, Poesia”,
157).
Joaquim
Ribeiro sustenta, portanto, de maneira inédita, que se o vate catarinense “não tivesse “background” racial para
explicar essas sobrevivências, naturalmente interpretaríamos a predominância de
aliterações em seu estilo como puro virtuosismo expressional” (a
expressão foi por nós sublinhada).
A
aliteração ocorre em inúmeros outros poetas simbolistas e neles, sem a presença
do sangue africano em suas veias, não podemos seguir por esse mesmo caminho. É
o caso, por exemplo, de Alphonsus de Guimaraens e todos os demais simbolistas.
Ninguém antes de Joaquim Ribeiro abordou tal hipótese numa análise estilística,
nem mesmo Antônio de Pádua, que escreveu o melhor ensaio até hoje publicado, a
nosso juízo, sobre o estilo de Cruz e Sousa. Muitos repetem seus versos
aliterados sem imaginar o poder que uma análise desse tipo tem, para tentar esclarecer
os mistérios literários da poesia e, mais ainda, os mistérios quase
impenetráveis do belo.
Ficam,
então, registrados aqui estes comentários, em forma de crítica literária, sobre
um fenômeno fonético, a aliteração, na poesia lírica de Cruz e Sousa, alçado à
majestosa galeria dos poetas simbolistas do século XIX, ocupando, sem dúvida
alguma, lugar de destaque muito especial junto à plêiade dos maiores
simbolistas de todos os tempos, ao lado de Mallarmé, Baudelaire, Valéry,
Verlaine e do alemão Stefan George.
(Esse tema foi motivo de uma palestra proferida pelo autor, na Prefeitura da cidade catarinense de Camboriú, em homenagem ao sesquicentenário de nascimento do poeta Cruz e Sousa, novembro de 2011)
ATÉ A PRÓXIMA
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