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21 de dezembro de 2018

UMA CASA AMARELA QUE PARECIA MAL-ASSOMBRADA




Imaginem uma menina de 10 anos publicando um livro para outras crianças também de 10 anos. Que coisa maravilhosa! Agora, imaginem que essa criança de 10 anos tem um avô que comenta os livros que muita gente escreve e também publica livros para gente grande, de todas as idades, inclusive para crianças de 10 anos.  Pois é! Acabo de receber um presentão de Natal: o livrinho de minha neta, Alice Queiroga Feijó, chamado A CASA MAL-ASSOMBRADA. Foi muita emoção, pois não moramos na mesma cidade e não acompanho, portanto, o dia-a-dia dessa encantadora criança, já com lançamento de livro marcado para muito breve, numa noite de autógrafos.
Mas minha netinha não me engana, não! Lendo sua obra, A CASA MAL-ASSOMBRADA, percebi que ela é de uma criatividade espantosa, pois colocou na fantasia a realidade. Explico melhor, porque sei que ela lerá esses comentários no Blog de seu avô, onde sempre apresento críticas literárias e variadíssimos tipos de textos, às vezes até poesias... Alice e seus pais, Ana e Luiz, meu filho, moram hoje, numa linda casa toda pintadinha de amarelo, que ficou por longo tempo abandonada, numa rua muito movimentada e conhecida, num bonito bairro da cidade do Rio de janeiro. Ela sempre ouvia seus pais dizerem que, um dia, toda a família ainda ira morar naquela casa. Mas a casa estava muito feia, com a pintura toda descascada, precisando de uma boa reforma. Parecia uma casa mal-assombrada, não é minha queridinha Alice? É assim mesmo o processo da criação. A gente mistura tudo que existe com o que gostaríamos que existisse, damos a nossa opinião, colocamos o nosso tempero, que é a maneira de se contar a história, e criamos algo que vai influenciar o ouvinte, no seu caso, agora, quem estiver lendo o seu livro.
Queridinha, fiquei muito contente, feliz e orgulhoso com o que você escreveu no seu primeiro livrinho, pois você seguiu direitinho a receita para agradar o leitor. Você situou a casa, falou sobre ela e preparou um plano para desvendar um mistério. Pronto, Alice! A história ficou maravilhosa! Meus parabéns!
Viu, queridinha, como o vovô sabe tudo!

ATÉ A PRÓXIMA

31 de outubro de 2018

COMO UMA PESQUISA ARQUEOLÓGICA, MAS LITERÁRIA TAMBÉM



            O PROGRESSO DA FOZ, grupo cultural, desde 1978, acaba de publicar a obra CANTAREIRA 61, A Casa de Raul Brandão, de autoria de Joaquim Pinto da Silva. Trata-se de uma pesquisa com lastro em farta documentação iconográfica, excertos cartoriais, como escrituras e registros de imóveis, plantas arquitetônicas de construções, as mais variadas possíveis, retidas às prefeituras do entorno da cidade do Porto, além de textos das obras notáveis de Raul Brandão, entre elas “Os Pescadores” e os contos de “História do Batel Vae com Deus e da sua Companha”. A importância de onde nasceu e cresceu um escritor existe, na razão direta em que a sociedade da época, com todas as suas dimensões, físicas e imateriais, por exemplo, seja retratada na obra, com alusões aos acontecimentos relevantes surgidos naqueles espaços circundantes, que um dia pertenceram à vida pujante de indivíduos simples como nós, que lá desempenharam seus papéis de personagens importantes, mas desprovidos de historicidade. Enfim, serve, para, como disse o autor do livro, CANTAREIRA 61, que o leitor tem agora a possibilidade de folhear: “para encontramos elementos de índole social e local que nos ajudam a construir uma história, uma paisagem da sociedade urbana de seu tempo”. Raul Brandão foi um escritor português, que viveu nos séculos XIX e XX, famoso pelo realismo das suas descrições e pelo lirismo da linguagem retratando a vida simples do entorno da Foz do Rio Douro, encontrando o mar.  Escreveu, entre outras obras, Humus, Os pobres, Memórias (2 volumes), Impressões e Paisagens, sendo que seu principal livro é, incontestavelmente, Os pescadores. História do Batel Vae com Deus e da sua Companha, são escritos que, mais tarde deram origem à obra maior, Os pescadores. A tese de Joaquim Pinto da Silva é de que Raul Brandão não nasceu e viveu a maior parte de sua vida no local onde tradicionalmente lhe atribuem. Para tal, debruçou-se sobre o farto material descrito acima e como um arqueólogo debruçou-se sobre os caminhos da Cantareira, removendo as camadas do tempo e escreveu sua tese. Vale a pena conferir. Pelos textos citados na pesquisa, o leitor pode tomar conhecimento da força da escrituração de Raul Brandão. O trabalho de Joaquim Pinto da Silva traz esses textos à cena, oferecendo-nos a possibilidade de sentir a força poética de seu texto, descrevendo a vida, os costumes e as atividades dos pescadores, daquela época, numa sociedade dependente da pujança do mar que invade a foz do Douro: “Um dia lança-se a nossa catraia ao mar. Os calafates, com estopa embreada, tomam-lhe as juntas de pinheiro por pintar. Alguns homens dão-lhe uma mão de piche, e um desenha-lhe nas tábuas do costado: Senhora dos Navegantes. Chega da Póvoa o Manuel Serrão, homem de poucas falas e calças de lona branca, e talha-lhe a vela estendida na areia. Corta-se o mastro do pinheiral do Lage. O senhor abade – toca o sino – asperge-a de água benta, e a companha, com os barretes na mão e fatos de ver a Deus, espera o último latim para a lançar sobre roletes ensebados pela lingueta abaixo”. Sempre são interessantíssimas suas observações sobre os conteúdos dos textos que consubstanciam a longa e fundamentada pesquisa, porque Joaquim Pinto da Silva, além de produtor cultural é professor de Língua e Literatura Portuguesa, aplicando seus conhecimentos nesse trabalho de investigação, sustentado por procedimentos inerentes à linguística textual. O autor mostra, assim, que domina, com argúcia, técnica e sensibilidade a leitura crítica dos documentos, que estão a provar o que sustenta e, ao mesmo tempo, encanta o leitor com um texto irreparável, suave e gostoso de ler. É exemplificativo a nota “António Luís”, publicada em 15 de setembro de 1902, de O Século, Revista Literária Scientifica e Artistica, dirigida por Eduardo Schwalbach Luci, apud, Vasco Rosa, in “A Pedra ainda Espera Das Flor, Dispersos”, Quetzal, fevereirode 2013, pág. 293. Transcrevemos todas essas informações para mostra como é seguro o trabalho de Joaquim Pinto da Silva, nessa pesquisa que mistura inúmeras facetas de seu plurifacetado repertório cultural. Esta investigação é técnica, mas suavizada pela sensibilidade poética de seu autor que tira da referencialidade o seu peso, suavizando-a com a languidez da prosa poética. Como dissemos, trata-se de um trabalho importantíssimo esse, o de buscar o lugar verdadeiro onde nasceu, viveu e circulou Raul Brandão. Só por isso estaria justificado tal hercúleo trabalho de pesquisa. Mas há mais nessa empreitada. Há a exegese das múltiplas investigações, pois as mesmas, como foi aqui mostrado, remetem o leitor para um intertexto subjacente, diretamente relacionado à cultura, que pertence ao geral do conhecimento humano. Trata-se, portanto, de um precioso trabalho, realizado por Joaquim Pinto da Silva, uma espécie de escavação arqueológica do tipo impactante, como a escavação de Schliemann, que desenterrou Troia pela leitura homérica.

ATÉ A PRÓXIMA

17 de outubro de 2018

A SOLIDÃO




Somos todos indivíduos que só existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado em sua amedrontadora solidão. Somos sociais. Dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado. 
Reflexões sociológicas, antropológicas, psicológicas, psicanalíticas à parte, contrariando todos os textos teóricos de Marx, Durkheim, Weber, Claude Lévi-Strauss, Freud e Lacan, por mais que o meio em que vivo esteja repleto das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagem comigo, sinto-me, muitas vezes solitário.
A solidão é amedrontadora, mas sei conviver com ela. Ela, muitas vezes me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras do supermercado, refugio-me sempre no minúsculo e ridículo quartinho de leitura de meu reflexivo apartamento. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas a vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Pessoas comprometidas com, também, todos os sentimentos, os mais variados possíveis, inerentes ao ser humano, que interage para ser, e reage à solidão. Então também aprendi a afastar esse tormento que nos isola e que nos aprisiona. Aprendi a viver nessa dualidade barroca, gostosa, que projeta a alegria de viver em grupo e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, talvez, por pura incompreensão dos fatos ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. 
Mas a vida é assim mesmo, misteriosa e incrivelmente criadora de situações dicotômicas. Saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta (a alegria encanta, mesmo), mas que, também, deprime e mata (a solidão é um terrível assassino), é para poucos. Esses mistérios não foram explicados nas escolas regulares por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios pertencem à escola da vida. Pertencem a outro sistema simbólico.
Um dia, visitando a românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele estranho funcionário, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava sem família num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente todas aquelas estórias escritas nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior do sagrado templo bracarense, respondeu-me que aqueles corpos intactos por mais de duzentos anos representavam um mistério de Deus. E transformando-se, alegre e feliz, quase que gritava: “Mistérios de Deus. Mistérios de Deus! ”

ATÉ A PRÓXIMA
  



4 de outubro de 2018

UMA FORMA GENÉRICA DE VERBO



A 35ª Oktoberfest começou ontem, mas a chuva impediu a realização do desfile que abre as festividades dessa que é a maior festa da cerveja fora da Alemanha. Ela é realizada, aqui, em Blumenau, no início do mês de outubro, do dia 3 ao dia 21.

O plano B dos organizadores foi executado dentro dos vastos salões do Parque Vila Germânica. Lá estavam os principais meios de comunicação do Vale do Itajaí e uma repórter da NST, afiliada da Rede Globo, em Santa Catarina, depois do desfile interno terminar, mas ainda durante a festança animada, que iria varar a madrugada, perguntou a um jovem como ele estava se sentindo. O rapaz entrevistado, de boa aparência, fantasiado de “Fritz”, muito alegre e sorridente, respondeu:

- A gente foi “surpreso” pela chuva.

Realmente, no horário do desfile de abertura, lá pelas 17 horas, caiu um aguaceiro danado na cidade de Blumenau. Ninguém esperava por isso, mesmo com algumas nuvens negras ainda no céu, depois mesmo de alguns pinguinhos sem nenhuma pretensão.... Até um solzinho pálido havia saído lá pelo meio da tarde, dando muita confiança aos patrocinadores de que mais um belo desfile alegórico, tradicional na abertura dessa festividade, iria acontecer. O povo esperava assistir a ele com muita sede e disposição para entornar cerveja de graça, goela abaixo. Mas não foi isso o que aconteceu. Caiu chuva para desanimar. Mas o plano B solucionou o problema e o desfile foi transferido para dentro daqueles enormes salões. Lá, com a festa bombando, a repórter fez a redundante pergunta ao nosso “Fritz” e obteve a tal esquisitíssima resposta. É claro que todos os telespectadores entenderam o que foi dito pelo rapaz, que não falou em alemão, não. Respondeu em nossa língua, mesmo. Ele quis dizer que todos que estavam esperando pelo desfile foram surpreendidos pela chuva intensa, que desabou naquela hora. Mas por que o rapaz disse “surpreso”, em vez de surpreendido?

Bem, ainda tem uma coisinha antes de tentar explicar isso. Ele usou o termo A GENTE, uma expressão composta por duas palavras (a – gente), uma espécie de pronome pessoal, correspondente a “nós”, mas que se refere à 3ª pessoa do discurso. Então, esse pronome pessoal A GENTE leva o verbo para a 3ª pessoa, no caso, singular. Assim: A gente foi “surpreso”....... E ainda se incluiu na concordância, pois disse “foi surpreso”, usando a forma no masculino, utilizando-se, ainda, da voz passiva... Agora vamos para o “surpreso”.

Nós pensamos rápido. As palavras que vão vestir nossos pensamentos, materializando-os com bonitas letras e seus sutis acentos, já estão prontinhas para entrar em cena. O Rapaz, ao responder à repórter da Globo regional, já tinha pensado na chuvarada que atrapalhou o desfile e nada foi mostrado ao público, como as formidáveis máquinas de servir Chopp, muito criativas e engraçadas, que a cada ano aparecem modificadas e mais engraçadas.... Mas o rapaz tinha de colocar, também, as famigeradas palavras, para dizer que ninguém esperava pelo temporal que desabou. Aí é que a porca torceu o rabo.  O cara sabia que a chuva pegou todo mundo de surpresa. Sabia que todo mundo ficou triste com o fato de a chuva ter prejudicado o desfile. Sabia, também, que foi uma surpresa geral para todos.... Mas cadê as palavras? As danadas não saiam.... Onde elas estariam? A surpresa é que dominava o pensamento do rapaz. O negócio foi a surpresa! Foi uma grande surpresa essa chuva danada! Eu fiquei surpreso, pensou lá no fundo de sua cabeça, já encharcada com as mais saborosas cervejas artesanais! É isso mesmo! Todos ficaram surpresos. Mas eu sei que existe o verbo SURPREENDER, pensava o rapaz vestido de alemão Fritz, já meio bêbado! Eu sei que o verbo é esse. Mas minha cabeça não está funcionando bem! Como eu coloco esse verbo aí nessa minha frase? Meu Deus! Socooooorrro! No entanto, naquela confusão mental, a palavra mais significativa que representou tudo aquilo foi SURPRESA, sem dúvida alguma. Então, simplesmente, ela se adaptou à forma verbal do verbo SURPREENDER. Não saiu o FUI SURPREENDIDO, mas saiu o seu genérico: “fui surpreso”. Afinal, não existem as formas PRESO ou PRENDIDO, de PRENDER e também SUSPENSO ou SUSPENDIDO, de SUSPENDER? Por que não pode existir e ser usada a forma “surpreso”, que me veio claramente à cabeça? Claro! Vou emprega-la. É ela mesma! E o rapaz, vestido de “Fritz”, meio bêbado e bem-apessoado, soltou essa “pérola linguística“, com um sorriso repleto do melhor lúpulo e da mais recatada e distinta cevada: - A gente foi “surpreso” pela chuva.

 ATÉ A PRÓXIMA


30 de agosto de 2018

O LIVRO SÓLIDO DE WENTH FILHO






A poesia de Ernesto Wenth Filho enquadra-se no que se convencionou chamar de produção poética contemporânea, que são os textos em verso ou prosa poética, surgidos a partir de 1945. Seu último livro, lançado recentemente em 2017, pela MJ Editorial, Balneário Camboriú, em 2017, traz no título da “capa” e da “quarta de capa” o título do livro, é claro, mas trata-se, também, de um poema. O poema-título SÓLIDO. Do que se trata?  Trata-se do nome do livro que se consubstancia como poema, cuja produção denuncia a manipulação da linguagem. Isso se dá pela captação da sensibilidade poética que vai buscar na realidade do referencial linguístico o significado cultural do termo SÓLIDO, assim: “Que dificilmente se deixa destruir por uma força externa; que tem fundamento real, seguro; digno de confiança, incontestável; firme, sério, duradouro; resistente”. E acrescentamos nós: todas as constelações semânticas advindas desses significados primitivos, que vão se multiplicar no “receptor-leitor” e em seu repertório.

A visão espelhada do esboço original da capa e a capa acabada é uma viagem que o leitor faz, antes mesmo de folhear as primeiras páginas desse último livro de Ernesto Wenth Filho. Essa forma original de produzir um texto poético é, na verdade, uma forma de linguagem, pois seus significantes, que adquirem significados motivados no real, fazem com que surja uma comparação inconsciente, no entendimento do receptor dessas novas mensagens codificadas, incorporando-as a seu repertório, a fim de ver nesse conjunto de signos, que é o texto produzido, uma forma expressiva, com novos significados, portanto, uma forma poética, com nova linguagem. Assim, passamos a caracterizar como poema, uma forma de linguagem, e o texto em questão, o é, por tudo que foi considerado e porque, acima de tudo, recria a linguagem articulada, recriando, com ela, uma nova maneira de se ver um mundo transfigurado.

A linguagem poética de Ernesto Wenth Filho está projetada para ser cantada em ritmos alucinantes da musicalidade muito próxima do ritmo do rock (p. 38), pois a referencialidade soprepuja a conotatividade de seus enunciados. Isso, contudo, não tira de cena a poesia contida em seus textos, como exemplificam os versos dos pequenos poema de seus textos, visualmente destacados entre sinais gráficos de grandes aspas. Aliás, funcionando dentro do contexto de SÓLIDO como verdadeiros grafemas, pois colocam significativamente em destaque uma outra forma de dizer o poético.

Sua linguagem mais referencial, portanto, convive, dividindo espaço com a suavidade das formas adjetivadas, que são, realmente, em menor número do que as substantivas, mas não desmerecendo o conjunto, que se sustenta por vários outros predicados, inerentes ao processo de criação poética.
Assim, a poesia de Ernesto Wenth Filho, neste seu livro SÓLIDO está relacionada com a descrição da realidade circundante e trabalha com diversos tipos de textos, incluindo a prosa poética narrativa-reflexiva (p. 8, 58).

Sua estrofação apresenta os seguintes segmentos: dísticos: (p. 65); tercetos (p. 29, 74); quadras (p. 14, 16, 38, 62, 72, 75); quintilha: (p. 70); estrofação mista de quadras e sextilhas (p. 6); estrofação mista de tercetos, quadras e dísticos (p.10); poemas de estrofação mista bem variada (p. 12, 18, 20, 22, 24, 26, 28, 30, 32, 34, 36, 40, 41, 43, 46, 48, 50, 52, 56, 64, 66, 68, 69, 71). Todos os seus poemas se compõem de versos modernos, com e sem rimas, sem métrica, mas com certo ritmo, nessas estruturas bem diversificadas de estrofes.

Finalmente, temos certeza que, futuramente, as obras poéticas de Wenth Filho, nos brindarão, plenamente, com poemas sequenciais, seguindo aquela linha inicial, quando inovou, desconstruindo o figurativo tradicional, em Só – LIDO, para construir uma nova forma de se ver o mundo, transfigurado pelo dialogismo da linguagem, com suas inúmeras possibilidades de leitura.


ATÉ A PRÓXIMA


23 de agosto de 2018

UMA VIAGEM A UM JARDIM DE QUASE 100 ANOS




Há, praticamente cem anos, Ribeiro Couto escreveu alguns dos mais significativos poemas de sua lírica intimista, nevoenta e com prenúncios modernistas. A publicação se deu alguns anos depois. Refiro-me ao livro O Jardim das Confidências, publicado por Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, em 1921 e que teve uma tiragem de mil exemplares. Foi sua estreia como poeta. Foram versos escritos entre a adolescência e a idade em que o rapaz está pronto para amar, sem saber que todo o amor inclui o sofrimento, parodiando, romanticamente o poeta português, Guerra Junqueiro.

    A cena se estende pela cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.  Uma cidade cheia de glamour e de barões do café. Palacetes e jardins, dentro e fora das casas. A elegância dos transeuntes e o charme dos primeiros automóveis importados pela Ford dão um toque de aristocracia à pacata e quase bucólica capital do histórico Estado brasileiro.
São Paulo, nessa época, era um espaço repleto de novidades culturais e começava a despontar para o progresso: non ducor, duco.

      Em 1955, morei, durante um ano, na capital paulista e ainda tive a oportunidade de ver uma cidade de raros encantos em suas ruas, praças, avenidas e bairros residenciais com seus floridos jardins. Encantei-me, muito antes de Caetano Veloso, com o cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, repleto de restaurantes - lembro-me do Restaurante Leão – espargindo o guloso perfume de seus sanduíches e pizzas, misturado a um cheiro diferente da gasolina, queimada pelos automóveis que passavam por aquelas esquinas de deselegâncias, que tocariam, anos depois (1978), o coração do poeta cantor. Sofri com a garoa fina e fria, quando caía nas imensas chácaras por onde passava a pé e também de bonde, querendo ir para Santo Amaro. Meu coração sentia - eu bem sei- a explosão de uma invisível emoção inconsciente de um EU adolescente que se viu envolvido pela penumbra da serra, num contraste com o mar do Rio de Janeiro, minha terra natal. Era a diferença entre o sol do Rio e a chuvinha fina paulistana. Com Ribeiro Couto deve ter acontecido o mesmo. De Santos do sol e do mar, do calor do Rio, onde se formou em Direito (1919), para um retorno à sombra dos dias cinzentos de São Paulo, deve ter sido um contraste imenso e significativo e que o marcaria, sem dúvida alguma, despertando no artista o EU melancólico, encontrado nos Jardins das Confidências.

        Em 1921 saiu seu primeiro livro de poesias e Manuel Bandeira não economizou palavras de elogio ao poeta, praticamente um jovem adolescente e tímido. “Este livro é, em todos os sentidos, uma obra-prima: no seu feitio, como na sua essência espiritual”, dizia Bandeira, que viria a ser o mais clássico dos poetas modernista, em sua crônica “Apologia de um Poeta”, escrita no jornal carioca O DIA, de 9 de outubro de 1921.

    Quando eu morava em Jacarepaguá frequentava, nas férias escolares, um grêmio cultural, fundado por um ex-aluno do Colégio Militar/RJ, que não seguiu a carreira das armas. Optou pelas letras, pela poesia e pela filosofia. Lembro-me que foi numa das primeiras reuniões do “GCMA” (Grêmio Cultural Machado de Assis) que eu conheci um professor de Língua Portuguesa no início de sua carreira. Esse professor fora convidado para presidir uma reunião festiva, num sábado à tarde, quando seria lido e aprovado o Estatuto daquela agremiação, idealizada por jovens estudantes e que deveria divulgar e estimular a prosa e a poesia na região oeste da cidade do Rio de Janeiro. Belíssima pretensão! Esse professor era Evanildo Bechara, meu mestre, hoje meu amigo, meu filólogo preferido, como digo na intimidade. Evanildo Bechara pertence, atualmente, à Academia Brasileira de Letras e é Presidente de Honra da Academia Brasileira de Filologia, de cujos quadros, com muito orgulho, faço parte. Lá, naquele humilde e incipiente refúgio cultural, frequentado por jovens deslumbrados pelas letras em prosa e verso, homenageava-se também, em ocasiões festivas, poetas de nossa literatura, recitando-se seus poemas e falando-se de sua história de vida. Então, o presidente daquele humilde e longínquo grêmio, talvez, e, com certeza, hoje desaparecido, ofuscado pela fantasmagórica névoa do esquecimento, homenageou naquele sábado de minha distante juventude o poeta Ribeiro Couto, lendo o poema O Desconhecido, de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS.

Quem é esse que está, sob a lâmpada morta, / Infantil a chorar debruçado na mesa?

     Foi o meu primeiro contato com o poeta. O “penumbrismo” em sua poesia me instigava, da mesma forma como mexia com minha imaginação a morbidez impressionista muito presente em sua poesia, envolta numa melancolia explícita e num erotismo velado. Eu vinha de um ambiente familiar muito comprometido com o parnasianismo, tanto na tentativa estética de compreender o belo, quanto nas atitudes apolíneas de comportamento social, cobrando, sempre, minha família de mim a busca pela perfeição.... Meu avô materno, tios e um tio-avô foram amigos de Olavo Bilac e admiravam sua poesia, do mesmo modo a de Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Théophile Gautier, Leconte de Lisle e Théodore de Banvi. Minha tia, Leopoldina Saraiva, era professora de francês e poetisa premiada. Moravam todos numa bonita quinta, uma construção no estilo neoclássico, repleta de arabescos externos, predominando em seu interior quadros e estatuetas com motivos e figuras, representando passagens da mitologia grega. Não aderi a esse estilo de vida, portanto não abracei a estética parnasiana. Já o simbolismo e o impressionismo, trazendo, quase sempre, embutidos em si os mistérios do mórbido penumbrismo, mexeu com o meu EU adolescente e eu poderia, agora, envolvido pelo espírito poético de Ribeiro Couto, dizer que aquele simbolismo impressionista muito me marcou, ficando tudo isso, para sempre, impregnado em minhas ilusões e pretensões literárias. 

     Ribeiro Couto estreou na poesia (1921) um ano antes da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo. Sua mensagem poética se apresenta envolvida em uma atmosfera simbolista, reagindo flagrantemente ao ambiente parnasiano, que no dizer de Ronald de Carvalho “estava saturado de girândolas, de fumaradas espessas, de fogos e labaredas alterosas”. Mas a poesia de Ribeiro Couto, nesse seu livro de estreia é, basicamente, uma poesia de transição, no início do século XX. Iria, contudo, pouco se modificar. Em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS há uma poesia de sombra, silêncio, mansuetude e noturnismo. O mesmo ocorreu com a poesia de Ronald de Carvalho, que apontaria um novo movimento intimista que surgia, ao analisar esse primeiro livro de Ribeiro Couto. Deu a esse movimento intimista o nome de “penumbrismo”, no artigo intitulado Poesia da Penumbra. Esse sentimento intimista e penumbrista, percebido por Ronald de Carvalho, já se sentira também na obra de Mário Pederneiras. A esse período da história de nossa literatura, quando autores se lançam na direção de uma vanguarda e novos estilos esperam o combate e cantam e agonizam, às vezes, em campo aberto, dá-se o nome de “sincretismo”. Vejamos o que diz Afrânio Coutinho:

Fenômeno facilmente observado na evolução da história literária, é o que se verifica nos períodos de transição ou zonas intermediárias: o aparecimento de escritores e poetas de valor incontestado, em cujas obras se infiltram tendências de escolas antagônicas, chocam-se princípios que se contradizem, sentimentos e emoções que se contrariam. E isso porque são atingidos pelas influências e reflexos do fim e do princípio de escolas que se sucedem. Sofrem tais escritores e poetas de uma inconsciência literária, tão compreensível e perdoável, que em nada lhes desmerece o valor global da obra”.  (In, A Literatura no Brasil, Vol. III, Tomo 1, p. 311).

    Está, portanto, localizada a obra de Ribeiro Couto, O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, dentro desse período sincretista que atravessou a poesia brasileira, antes de se afirmar nas novas estéticas, que não tardariam a surgir.

  Então, a poesia de Ribeiro Couto, tão entusiasticamente apresentada por Bandeira, como vimos no início, só iria ser inserida no Modernismo, depois de uma insistente crítica embasada nas modernas teorias literárias, por parte de estudiosos, que perceberam que não se tratava de um poeta menor dentro do movimento que aflorou em 1922. Seus companheiros, poetas naquele momento de transição estética dos anos 20, principalmente Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade vão com ele manter uma viva troca de ideias, através de uma profícua correspondência, mostrando visões estéticas muito diferentes, mas sem deixarem de reconhecer o valor significativo da poesia de Ribeiro Couto. Sobre o livro que hoje tem quase 100 anos, diz Vera Lins, doutora em Letras pela UFRJ e professora de Teoria da Literatura:

O olhar é forma de conhecimento, contemplação produtiva que faz o sujeito perambular como vagabundo, andarilho que vê e ouve a cidade. Assim aparece o EU lírico nos primeiros livros de Ribeiro Couto, revelando um imaginário próximo a Baudelaire e aos simbolistas. É com vagos olhos de passante que percorre as ruas do Rio e de São Paulo, fixando luz, cores, objetos e pessoas em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, POEMETOS DE TERNURA E MELANCOLIA E UM HOMEM NA MULTIDÃO”. (In, Ribeiro Couto, uma questão de olhar. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.)

O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS é dedicado à cidade de São Paulo, “às suas manhãs nevoentas de sol frouxo”. Poemas de adolescente ferido pela volúpia de amores, que são recriados e transfigurados em uma atmosfera de meios tons, de penumbra, de sombras, de névoas, de disfarçado erotismo em um ambiente que retrata motivos simples do dia-a-dia, temáticas que desenvolvem um motivo central, que é o sentimento de paz, embora a alma sofra como sofre a alma de todos os poetas...

  Um ano depois do lançamento de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, em 1922, realiza-se, no Teatro Municipal da cidade de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. Foram três noites de apresentações de recitais, conferências, declamações, grupos de artista e intelectuais tentando mostrar as novas concepções e tendências estéticas de arte. Abaixo a “ars gratia artis” dos parnasianos! O objetivo era a destruição das velhas formas artísticas na literatura, na música e nas artes plásticas. Os organizadores procuravam apresentar e discutir os princípios da chamada arte moderna. Pairavam, também, sobre os participantes muitas dúvidas a respeito do que se estava querendo contestar. Um dos mais representativos intelectuais do movimento, Oswald de Andrade, num esforço de síntese, afirma: "Não sabemos o que queremos. Mas sabemos o que não queremos." A cidade se dividiu entre os futuristas (renovadores) e os passadistas (conservadores).

    Em 1922, o escritor Graça Aranha (1868-1931), que pretendia romper com o  passado, aderiu abertamente à Semana da Arte Moderna, criando uma cisão na fechada e reacionária Academia Brasileira de Letras, defendida por seu líder, o escritor Coelho Neto (1866-1934). Essa contenda entre opiniões estéticas diferentes criou uma das maiores polêmicas acadêmicas, como há muito tempo não se via.        

    O público aplaudia as manifestações contestatórias por uma nova estética, tanto  vindas de um primeiro equivocado discurso de Graça Aranha como das leituras de textos vanguardistas de Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade.  Mas a grande sensação do evento foi Ronald de Carvalho, na segunda noite, quando ele leu o poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira que, por motivo de saúde, não pode comparecer. O poema fora uma irônica crítica endereçada aos ideais parnasianos e ao seu grande e principal representante, Olavo Bilac, que ainda era cultivado pela maioria do público, uns poucos privilegiados com o conhecimento teórico da estética dominante na época. A reação foi estrondosa. Vaias, gritos, batidas de guarda-chuva nas cadeiras e poltronas, um alvoroço total, até a sessão ser interrompida. E a gritaria no interior do Teatro Municipal não parava: FOI! NÃO FOI! FOI! NÃO FOI! Citando Sergius Gonzaga, pode-se dizer que “metaforicamente, com sua iconoclastia pesada, o poema delimita o fim de uma época cultural”.

   Mário de Andrade, um dos principais teóricos do movimento modernista, sintetiza os propósitos dessa nova articulação cultural, como uma forma de legar às gerações futuras os frutos que colherão, a partir das sementes agora lançadas nos palcos da Semana de 1922, isto é, a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira; a atualização intelectual com as vanguardas europeias e o direito permanente de pesquisa e criação estética. 

   Ribeiro Couto participou da Semana de 22 e sua contribuição para a vida literária de então seria este seu O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, muito distante, é verdade, do rompimento total com o passado estético, mas com uma forma envolvente de montar um novo ritmo, lento, é verdade, mas suave como toda sua poesia. Revalorizou, então, o verso alexandrino, desgastado pelo soar sistemático das cesuras parnasianas. Seus versos possuem o doce ritmo da chuva fina que molha sem encharcar:

“A chuva fina molha a paisagem lá fora. / O dia está cinzento e longo.... Um longo! ”

É a poesia da impressão e da intensificação, do momento diáfano que não se repete nunca:

“Tem-se a vaga impressão de que o dia demora”.

“Parece que morreu a vida. / Parece que morreu a vida / Na velha praça adormecida”.

Uma visão impressionista do mundo que o cerca e o motiva:

“Tenho uma sensação tonta e maravilhosa / De estar vagando no ar, leve como uma pluma”.


Dando preferência ao verso alexandrino, em seu primeiro livro de poesia, Ribeiro Couto, em compasso quaternário, no poema “No Cais”, repete as estruturas métricas, proporcionando a continuidade e a duração da ação:  

“Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar...”

     Segundo Manuel Bandeira, analisando esse mesmo poema, “No Cais”, diz que “os pobres de poesia, aqueles que só conseguem perceber as realidades objetivas não conseguirão compreender as imaginações férteis, pois elas ganham sentido mais alto, alongam-se em perspectivas mais fundas, quando não se transmudam a realidades astrais”. No poema “No Cais, a realidade subjetiva do abraço dado à mulher, foi o pequenino Suave Milagre da poesia”, continua Bandeira, após ouvir de um crítico e poeta que tal abraço é um absurdo num mundo de duras realidades. Bandeira continua analisando os versos de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, mostrando que a forma de emoção e sugestão provém muito da musicalidade neles contida.

    Esse recurso formal de repetição das estruturas métricas, aliado a sucessivas tentativas rítmicas de polifonia, em versos alexandrinos de compasso ternário, dão evidentemente, à poesia de Ribeiro Couto uma imensa musicalidade, já percebida pela análise de Rodrigo Melo Franco, logo após a publicação de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, quando assinala que “todas as poesias de Ribeiro Couto são canções”.

    Manoel Bandeira, em sua Apologia de um poeta, aqui citada, no início desse trabalho, disse, em 1921, o que a Vera Lins percebeu, ao analisar a obra de Ribeiro Couto, em seu trabalho, já citado também, datado de 1997. Lá está, no poema “Mascarada” o subjetivismo elaborado, responsável por refazer todas as realidades objetivas do poeta. Assim, a poesia de Ribeiro Couto, poeta intimista, quase “flâneur” nesses versos, se caracteriza por uma forma subjetiva de mostrar a realidade através de seu olhar, que também é uma forma de conhecimento para a contemplação produtiva, pois é perambulando e observando que, segundo Bandeira, consegue Ribeiro Couto ser arguto e cínico. É necessário conferir:

Mascarada

“Passastes a sorrir, frívolas Colombinas,
A sorrir.... Para mim? Eu entre a multidão,
Eu também vos lancei confete e serpentinas...

Em torno a multidão agitava pandeiros.
A berrar, toda a praça era uma aclamação.
“Bravos! ” E eu via rir vossos olhos brejeiros.

Fostes passando.... Tive uma fina tristeza.
Perdido, o meu olhar errava sobre vós...
Seria Momo o deus do amor? Ah! Que incerteza!

E ao desaparecer da linda mascarada,
Entre ruflos e o guizalhar dos dominós,
Levei ao rosto a minha mão: voltou molhada...
Seria Momo o deus do amor? Pobre de nós!

Ribeiro Couto em seu livro de estreia, como nos seguintes, tem preferência pelo verso alexandrino, expressando-se ainda em versos curtos de oito sílabas e seu quebrado de quatro. Em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS adota versos alexandrino, decassílabo e octossílabo. Sua poesia é espontânea e suave, realizada sob uma atmosfera de sonho e devaneio, de sombras e umidade. Constrói com o simbolismo da lâmpada o seu campo semântico, ligado à imagem do brilho nas trevas, imagens antitéticas que envolvem grande número dos poemas de seu primeiro livro, desenvolvendo com essas temáticas o seu Leitmotiv. Sua mensagem poética se realiza nessa simbologia através de metáforas animistas, numa visão impressionista da realidade fugitiva:

“Sobre a mesa de estudo, a lâmpada adormece”.

“A lâmpada é a melhor companheira que existe / Para as horas do desespero que esmorece.../ Tua recordação é uma lâmpada triste...”

“A luz da vela, amarelada e meio morta”

“A lâmpada vermelha esfuminha o teto”

“Lá na sala uma lâmpada sozinha”

“Quem é esse que está, sob a lâmpada morta”

“Ao centro a lâmpada cochila”

“A lâmpada evoca em vigília...”

“E o mortiço clarão da lâmpada quieta”.

A sedução pela luz mortiça da lamparina atinge seu auge no poema:

O Desconhecido

Quem é esse que está, sob a lâmpada morta,
Infantil, a chorar debruçado na mesa?
Olá, rapaz, que tens? Conta.... Contar conforta.
E em tua boca eu sinto estrangulada, presa,
A confissão que assim, sob a lâmpada morta,
Entre livros, terá mais tristeza, tristeza...

Pões os olhos em mim: pobres olhos molhados
Em que o pranto desceu como um véu vermelho.
Conta o que tens.... Enxuga os olhos desgraçados...
E ele chorava para mim, dentro do espelho.

O poeta cria um cenário simples. Tudo é simples. A mesa é simples. A lâmpada é simples. Simples é também a atitude infantil da personagem. Mas o engenhoso “set”, onde o poema se realiza é complexo. Estamos diante de uma variação cenográfica da tela de Velásquez, As Meninas, onde os retratados (em Velásquez são dois, os reis de Espanha) só são conhecidos pelo reflexo do espelho. Todos os olhares são para os retratados, mesmo o olhar do autor, tanto no poema quanto na pintura e lá, por motivos óbvios. A realidade se consubstancia pela imagem especular, que é destorcida e invertida e, enquanto linguagem, tenta reprimir o real. O diálogo se estabelece no poema entre o EU lírico e a castração do sujeito. A fala é interditada no sujeito e a melancolia aflora. Lá, em As Meninas, Velásquez desponta radiante como criador e como criatura, pois se retrata também. No poema O Desconhecido, Ribeiro Couto se ressente de identidade e não se encontra. A pergunta do criador fica sem resposta, pois a fala da criatura foi interditada pela castração do desejo. A resposta foi o pranto. Poderia ser o riso?

     O primeiro livro de Ribeiro Couto nos traz uma poesia sensorial repleta de imagens plásticas, ressaltadas por um vocabulário táctil que demonstra a ansiedade adolescente de tocar, de ver com as mãos, precipitando uma temática sensualista, que o acompanhará até seu último livro de poemas, LONGE (1961). Tudo, neste primeiro livro, está envolvido por um erotismo disfarçado, levando a seu espírito uma sensação de paz e de êxtase amoroso. Pode-se isso observar com muita nitidez no poema “O Desejo da Mão” e nos dois versos que seguem: “Esse perfume espalha mãos cheias de afago” e “Vozes quentes de lavadeiras”, onde as sinestesias envolvendo o tato atestam a percepção da realidade através dos sentidos que se interpenetram. A temática sensualista ainda é desenvolvida em versos como: “Sentindo as mãos geladas de abandono”; “Apertando-lhes as mãos murmuro intimamente”; “O teu olhar amigo, as tuas mãos amantes...” e em muitos outros.

    Não poderíamos deixar de assinalar em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS a  presença da temática da morte, que surge motivada pela enfermidade que se abateu sobre o poeta. Esta temática, embora apresente aspecto destoante e até mesmo antitético, em relação ao Leitmotiv, é por isso mesmo, elemento de contraste que ressalta o motivo central e que pertence a uma estrutura condutora de todo o EU lírico da poesia de Ribeiro Couto. Assim, encontramos no poema “Noite Monótona de um Poeta Enfermo” esta temática desenvolvida, juntamente com a evocação dos cuidados maternos, onde a presença da mãe do poeta aparece aureolada como doce anjo-da-guarda. Mais tarde, a figura de sua mãe se precipitará em uma profunda nostalgia. “Todo o rumor que, lá fora / Chega a meu quarto de doente”.

    Ribeiro Couto em toda a sua obra poética utiliza-se de recursos formais que serão explorados, mais tarde, pelo romancista e contista. O principal recurso formal, a nosso ver, é a técnica do monólogo e do diálogo. Neste seu primeiro livro de poesia essa técnica já se faz notar. Pensamos que já estão ali os primeiros diálogos e monólogos poéticos que aparecerão no seu romance “Cabocla”.

   Sobre os versos de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, é interessante assinalar a observação de Carlos Drummond de Andrade, que vê na obra a presença dos temas do cotidiano, envolvidos por um lirismo muito pessoal, além da tristeza e da melancolia. Drummond, em carta, iria dizer que o amigo é o Casimiro de Abreu do Romantismo: “Você, Ribeiro Couto, ficará em nossa poesia com uma nota muito pessoal de lirismo, como ficou o Casimiro de Abreu (peço que não se zangue), como ficará o Manuel (Bandeira), poetas dissidentes, como dizem os profissionais da alegria, mas que encontram sempre repercussão”. Ribeiro Couto lhe responde, concordando.

    A poesia de Ribeiro Couto, em toda a sua obra e principalmente em seu livro de estreia foi toda mansa, sem gestos, sem exaltações. Com tormentos, é verdade, mas com o dom de falar alto.

   Muito mais tarde, quarenta anos depois, com versos maduros, Ribeiro Couto irá exprimir a saudade de seu povo e de sua terra, no livro LONGE, publicado em 1961, pela Editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Lá estão os versos que soluçam tristeza, amor, paixão, à semelhança de um Catulo da Paixão Cearense e de um João Cabral de Melo Neto. Mas isso fica para outra oportunidade.


ATÉ A PRÓXIMA




21 de agosto de 2018

CRUZ E SOUSA E SUAS ALITERAÇÕES




Falar sobre Cruz e Sousa é falar sobre o maior poeta do Simbolismo Brasileiro. Serei breve e simples, mais para manter vivo os registros  de crítica literária, que nessas minhas páginas da rede social faço, com certa periodicidade, do que para dar à poesia simbolista do autor de Broquéis, um trabalho crítico de grande valor, pois para tanto, faltam-me engenho e arte. De qualquer forma, peço a paciência do leitor, porque o tema é novo. Tentarei, então, apresentar uma pequena análise crítica de sua poesia, focando um determinado viés de sua construção poética, entre inúmeros outros possíveis. Aqui, uma análise fônica.

Todo texto ou escritura denuncia algo. É só procurar com as lentes da microanálise. Com o artifício da análise estilística pode-se mostrar por dentro a alma de um poeta. Vamos, então, procurar as combinações dos fonemas que estruturam os versos, proporcionando as mais significativas formas expressivas de um texto poético. Mas tudo isso na estrutura da investigação latente do texto. E como atingimos o latente? Através de análises especiais. Analisar é separar as partes do todo, é um processo de deslocamentos de inúmeras partes do discurso, pois há muitos conteúdos que se prendem ao texto, à sua estrutura fônica, à sua estrutura mórfica, à sua estrutura sintática e tudo isso pode denunciar, ou melhor, pode explicar um estilo ou um sentido estilístico, algo que se localiza muito além do literário. Traumas de vida podem ou não aparecer nos textos de um autor. Vicissitudes de uma existência inteira, carregada de infortúnios e desgraças, além de características de uma etnia, impregnadas na ”langue”, por exemplo, podem marcar a “parole” poética de um poeta, e seu discurso evoluirá esteticamente, consubstanciando-se, assim, o artístico. Já a arte, contudo, será o resultado da observação dessa materialização pelo receptor, uma vez que é nele que está centrada a mensagem transfiguradora da realidade. Com esse espírito investigativo, fomos encontrar em Joaquim Ribeiro, no seu livro Estética da Língua Portuguesa, uma hipótese sobre a possibilidade de ter sido a poesia de Cruz e Sousa influenciada linguisticamente por suas origens, isto é, por uma herança étnica: a língua Banto, africana. Para tal, no Capítulo V dessa preciosa obra, o autor nos brinda com um artigo intitulado Vestígio da Concordância Banto no Estilo de Cruz e Souza, onde o ilustre filólogo, que ocupou a Cadeira 33 da Academia Brasileira de Filologia, da qual muito me orgulho de também pertencer, afirma que “não será desarrazoado modificar, em certos casos, a velha definição buffoniana. O estilo muitas vezes é mais do que o homem. O estilo é a raça, com o equipamento cultural”.

Acredito que Joaquim Ribeiro esteja correto, pois é impossível separar Cruz e Sousa de sua herança étnica. Se assim aceitarmos essa colocação, podemos dizer que há elementos bem significativamente raciais na poesia e na prosa de nosso maior poeta simbolista.  

O autor da Estética da Língua Portuguesa procurou na linguagem poética de Cruz e Sousa alguma coisa a mais em seu estilo que traísse sua ascendência racial. O que mais chamou a atenção do insigne pesquisador foi a abundância das aliterações, recurso que Cruz e Sousa usa e delas abusa.  As aliterações são formas de se construir as frases, os versos, os parágrafos, enfim, um texto com a repetição da mesma consoante inicial, no sentido de tentar quebrar a arbitrariedade do signo linguístico, quando teremos uma forma imitativa ideal e nunca real, ou quando se tem a proposta de obtermos formas lúdicas, onde os sons repetidos nos diversos vocábulos proporcionam uma enorme sonoridade e musicalidade ao texto, sempre evocando, sempre sugerindo. Quando a repetição dos fonemas iniciais dos vocábulos se dá por variação cognata, ou quando os fonemas repetidos são homorgânicos, ocorre o fenômeno conhecido na estilística fonética como coliteração. Aliás, as variações consonânticas de fonemas, que dão ao verso um ritmo significativo e ímpar, foram estudadas no verso moderno, muito tempo depois de Cruz e Sousa, por dois grandes autores, um norte-americano, Kenneth  Burke,  e outro brasileiro, Oswaldino Marques.
Joaquim Ribeiro vê nas aliterações dos textos de Cruz e Sousa “uma sobrevivência de cunho racial, vestígio de uma concordância aliterativa, própria  das línguas bantos”.  O linguista e filólogo pesquisador se vale dos estudos sobre a língua Banto, realizados por Bentley, conceituado africanólogo, para mostrar que os bantos da África possuíam uma primitiva gramática, cuja concordância aliterativa é um fato significativo de sua estrutura fraseológica, portanto um traço linguístico pertinente, pois estabelece uma oposição significativa.

Observemos o exemplo apresentado por  Bentley:

O matadi mama mampembe mampewa i mam mama twamwene”.
O prefixo  -ma- que aparece no substantivo  -matadi- aparece obrigatoriamente nos adjetivos, verbos e pronomes que ao substantivo se referem: mama, mampembe, mama etc.
João Ribeiro, o grande historiador, folclorista, filólogo e erudito homem  dos temas humanísticos, da Academia Brasileira de Letras e pai de Joaquim Ribeiro, aponta reminiscências dessa sintaxe também no linguajar dos antigos escravos aqui no Brasil, em situações como:

Z’ êre z’mandou z’dizê” = Ele mandou dizer.
Acrescentamos nós que, igualmente, encontramos essa forma de falar, com idêntica sintaxe, nos terreiros de candomblé. Assim:
Z’ êre é mi z’fio” = Ele é meu filho, no linguajar de muitos pais-de-santo, que ainda hoje existem na Bahia e em diversos outros Estados brasileiros.

 Em Santa Catarina, mais precisamente no vale do rio Camboriú, de acordo com o historiador e folclorista Isaque de Borba Corrêa, em seu livro Poranduba Papa-Siri, ano 2000, apresenta-nos os seguintes falares de negros da região, em suas festivas cantigas:
“Já jivou, jinêga, jinão tenho jibatêra” =  Já vou, nega, não tenho batera.
Jiondistá meu jifacão, ondistá meu facão ?  /  Caiu lá na jabobêra, caiu lá na jabobêra!” = Onde está o meu facão, onde está o meu facão? / Caiu lá na aboboreira, caiu lá na aboboreira!
Jecaldo de cana, jefrutas, jebananas” = Caldo de cana, frutas e bananas.

Lembramos ainda, que línguas em formação, historicamente apresentam fenômeno parecido, na mesma linha fonética e até fonológica, como é o caso do  Latim, que na antiquíssima inscrição da “fíbula prenestina”, deixou gravada a inscrição: MANIOS FEFACIT NUMOSIOI = Manios fez para Numósio. O fenômeno fonético e, neste caso, também fonológico, pois aponta para uma marca morfológica, diferenciadora de tempo verbal se chama reduplicação, uma repetição da sílaba inicial do verbo, com variação vocálica, marcando o pretérito perfeito (FEFACIT), o que não deixa de ser uma forma de aliteração interna.

Observa-se, outrossim, que a linguagem tautológica infantil, primitiva por excelência, em relação à história do sujeito falante, é, em muitos casos, reduplicativa e aliterativa.

Mas voltando aos versos de Cruz e Sousa, podemos neles ver essa tendência aliterativa da língua dos bantos, sendo que na poesia do vate catarinense, isso ocorre exclusivamente em forma de um recurso estilístico.

Vejamos algumas concordâncias aliterativas em Cruz e Sousa:

“Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias de violões, vozes veladas,
vagam nos velhos, vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas... “                                    
(In, “Poesias”, 189);

“ricos e raros resplandesceram” 
(In, “Poesias”, 43);

“a cor cantava-me nos olhos” 
(In, “Prosa”, 426);

ALITERAÇÃO DE SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS EM SUBORDINAÇÃO

“mole e morna melopéia” (In “Poesia”, 195);
“tantálica tentação de seus braços tentaculosos” (In, Poesia”, 194);
“verde, viva e viçosa vegetação dos vergeis virgens” (In, Poesia”, 145);
“pomos pomposos de pasmo sensibilizantes” (In, Poesia”, 391);
“finos frascos facetados” (In, Poesia”, 125);
“força  fina e fria” (In, Poesia”, 26);
“brusco e bronco biombo” (In, Poesia”, 94);
“soberbos e solenes soberanos” (In, Poesia”, 28);
“raras rosas” (In, Poesia”, 157).

Joaquim Ribeiro sustenta, portanto, de maneira inédita, que se o vate catarinense “não tivesse “background” racial para explicar essas sobrevivências, naturalmente interpretaríamos a predominância de aliterações em seu estilo como puro virtuosismo expressional” (a expressão foi por nós sublinhada).

A aliteração ocorre em inúmeros outros poetas simbolistas e neles, sem a presença do sangue africano em suas veias, não podemos seguir por esse mesmo caminho. É o caso, por exemplo, de Alphonsus de Guimaraens e todos os demais simbolistas. Ninguém antes de Joaquim Ribeiro abordou tal hipótese numa análise estilística, nem mesmo Antônio de Pádua, que escreveu o melhor ensaio até hoje publicado, a nosso juízo, sobre o estilo de Cruz e Sousa. Muitos repetem seus versos aliterados sem imaginar o poder que uma análise desse tipo tem, para tentar esclarecer os mistérios literários da poesia e, mais ainda, os mistérios quase impenetráveis do belo.

Ficam, então, registrados aqui estes comentários, em forma de crítica literária, sobre um fenômeno fonético, a aliteração, na poesia lírica de Cruz e Sousa, alçado à majestosa galeria dos poetas simbolistas do século XIX, ocupando, sem dúvida alguma, lugar de destaque muito especial junto à plêiade dos maiores simbolistas de todos os tempos, ao lado de Mallarmé, Baudelaire, Valéry, Verlaine e do alemão Stefan George.

(Esse tema foi motivo de uma palestra proferida pelo autor, na Prefeitura da cidade catarinense de Camboriú,  em homenagem  ao sesquicentenário de nascimento do poeta Cruz e Sousa, novembro de 2011)

ATÉ A PRÓXIMA


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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.