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1 de junho de 2019

UMA RECENSÃO À GUISA DE PREFÁCIO OU VICE-VERSA: UMA VIDA ALEGRE DE AMOR E POESIA





Alegria” é o terceiro livro do poeta Ayrton Bento Mafra. Antes, havia publicado “Amor em Evidência”, 2009 e “Reflexões”, 2015. Nos três livros desse extraordinário poeta catarinense, que surge sem alarde, sem grandes anunciações, sem uma conhecida editora a lhe apresentar ao mundo literário e à crítica especializada, estão reunidos mais de mil poemas, em forma de sonetos e sextilhas, todos dentro dos rígidos padrões da arte poética. Ayrton não se esqueceu de contemplar, em “Alegria”, o poema moderno. Seu texto modernista não é radical, não desrespeita os ditames gramaticais nem se transforma em enigmas indecifráveis. Volta-se para o cotidiano, com um vocabulário sem nenhuma pompa, num aproveitamento poético da linguagem espontânea, construindo versos livres de rimas, com estrofações, as mais variadas possíveis. Todas essas publicações, que vieram a lume, foram preparadas por pessoas de seu convívio diário, seus parentes mais próximos, filhos e, principalmente, sua esposa. Assim sendo, senti-me extremamente horado ao receber o convite para preparar uma introdução a esse seu terceiro livro, “Alegria”, que, realmente, é um hino ao amor e ao próximo, pois o título contagia.... Seus familiares e amigos mais chegados, sensíveis ao formidável impacto estético que os seus versos lhes proporcionaram, foram os editores dessa terceira publicação. Eles não só permitiram que a pródiga e agradabilíssima produção poética de Ayrton Mafra fosse apreciada publicamente, como ofereceram à crítica literária especializada um magnífico material, para o surgimento de significativas análises e microanálises literárias, que, certamente, colocarão o nome de Ayrton Mafra ao lado dos mais significativos poetas brasileiros.
Como é sabido, toda e qualquer obra de arte está sempre centrada na ótica do receptor e, por conseguinte, somente quando o atingir, como destinatário final, estarão as mensagens poéticas, no caso os poemas de Ayrton Mafra, poeta catarinense da pequena, mas próspera e bucólica Ilhota, prontas para os mais significativos e diferentes estudos críticos especializados. Então, chegou o momento. Três livros já estão à disposição do leitor sensível ao belo.
Não pretendemos, aqui e agora, desenvolver uma teoria sobre o retorno do metro clássico na poesia moderna, mas e somente iniciar um movimento para chamar a atenção dos estudiosos a respeito de uma grande voz poética que trabalha, sim, o verso clássico com o rigor que lhe é exigido, e que não o aprisiona nas amarras parnasianas, mas o torna deliciosamente agradável aos ouvidos, suavizando o ritmo alucinado das cesuras métricas, com um conteúdo variadíssimo de temas que levam-nos a refletir sobre a vida e o comezinho do dia-a-dia, deixando-nos envolver pela harmonia rítmica, compassadamente estruturada na singela beleza de suas rimas. Assim essa voz poética, uma das mais significativas desse pós-modernismo sincrético, lega-nos, com a publicação desses seus três volumosos e preciosos livros, um texto poético denso, sem excessos e obediente às mais rígidas estruturas da arte poética.
O terceiro livro de Ayrton Mafra, “Alegria”, apresenta três tipos de poemas: o soneto, a sextilha e o poema livre na concepção modernista. Nesse novo livro, o poeta continua privilegiando o amor e a natureza, como os grandes temas centrais de sua obra. Portanto, o Leitmotif, responsável pelo desenvolvimento de seu eu-lírico, muitas vezes intimista, leva-o a ver e a sentir, de maneira peculiar, o mundo que o cerca, através de ritmos expressivos, mas vigorosos, tanto nos sonetos como nas sextilhas. O livro inicia com o soneto que dá nome à obra, numa ode à vida. É uma homenagem à poesia, que sustenta alegremente seu viver. Para o poeta, a poesia é um bálsamo ao seu sofrimento, que se apresenta latente, nunca manifesto, e que surge, muitas vezes, por antíteses, implícito, aqui, no último verso do primeiro quarteto, onde vocábulos fonéticos, por exemplo, significativamente representativos da vida como alegria, que suplanta tudo, surgem (botapra cimasustenta – vida - alimenta): “que me bota pra cima, me sustenta”, e nos dois últimos versos do segundo quarteto:   ainda me dá vida, me alimenta, / levanta o meu astral dia após dia”. Estruturalmente, neste soneto, composto todo por versos decassílabos heroicos, com o esquema de rimas abba – baab – ccb – ddb – , as duas quadras são a proposição temática e os dois tercetos a conclusão, chegando-se, ao décimo quarto, o último verso, à chave de ouro do soneto, uma perfeita e completa semantização da proposta inicial.

ALEGRIA

Bem viva, mais e mais se implementa
em mim, duma maneira luzidia,
essa coisa chamada de alegria
que me bota pra cima, me sustenta.

Constantemente, em minha companhia,
é ela quem, à flor dos meus setenta,
ainda me dá vida, me alimenta,
levanta o meu astral dia após dia.

Eu sinto, de maneira enorme, imensa,
que ela simplesmente é a presença,
presença que, demais, se evidencia

bonita, importantíssima, constante,
preciosa como a gema do brilhante,
brilhante como a luz da poesia”.

            Não é nossa intenção realizar, com o presente comentário, uma análise estilística desse novo livro de Ayrton Mafra, nem de alguns de seus poemas, isoladamente, mas pretendemos, isto sim, tentar mostrar o valor intrínseco de suas produções, pinçando do conjunto dessa significativa obra poética, que agora o leitor tem em mãos, alguns dos mais interessantes e significativos artifícios técnicos de que o poeta lança mão, para construir seu texto lírico. Tentaremos, simplesmente, ressaltar em seus sonetos, sextilhas e demais poemas, aquilo que, a nosso juízo, é o condutor de seu lirismo, o amor à vida, fator de transfiguração de uma realidade só sua, íntima, mas que, ao mesmo tempo, é plural, pois tudo que sensibiliza o poeta é fruto de observações no ambiente circundante, onde pessoas interagem. Assim, o poeta se transporta para o outro, com o qual está comprometido socialmente.

            Formalmente, para materializar suas pretensões poéticas, Ayrton recorre a inúmeras formas de criação, sendo o enjambement uma delas em especial e com a qual trabalha magistralmente. Essa partição da frase de um verso, sem respeitar as fronteiras claras do sintagma, colocando um termo do sintagma no verso anterior e o restante no verso seguinte, impulsiona o ritmo da leitura e cria o efeito de coesão, união, muitas vezes, do fundo à forma [ó]. O poema ALEGRIA apresenta esse artifício no primeiro verso. Observem: “Bem viva, mais e mais se implementa / em mim, duma maneira luzidia...” O enjambement se apresenta às centenas, em toda a obra, cada um com suas interpretações subjetivas, mas consistentes, criando formas expressivas, que vão dar ao conjunto mais beleza e nos causa encantamento, personificando um ritmo próprio.

            Outro artifício muito empregado pelo poeta de “Alegria” é a maneira de construir as frases. Muitas vezes o poeta desloca termos de uma oração, ou orações de um período. Esses deslocamentos, ou hipérbatos, oferecem ao contexto a possibilidade de outras interpretações, ou melhor dizendo, fazem com que haja a possibilidade de se ler o latente, aquilo que está escondido no pensamento do poeta e que uma simples inversão sintática demonstra manifestamente. Assim, no soneto A ARTE VERDADEIRA, pode-se ler: “a mente ser, dos versos, a rendeira” (ser a mente a rendeira dos versos).  Aliás, esse hipérbato é combinado, muitas vezes com um outro artifício, um cruzamento morfológico. Esse artifício, ou figura de construção, também muito usado por Ayrton, se chama quiasmo, uma maneira bimembre de construir períodos, em que os elementos mórficos se cruzam em “X”, realçando sonora e semanticamente as frases do período envolvidas. Observem, ainda no mesmo soneto: “O que me encanta mesmo é, certamente, / os versos feitos renda pela mente; / a mente ser, dos versos, a rendeira” (mente  X  mente). No soneto A OBRA FICA, o quiasmo se apresenta no primeiro terceto e pelo cruzamento dos significantes morfológicos a ideia desenvolvida cresce e se presentifica com toda a sua força significativa. Observem: “Sim, deixa quando morre, na verdade, / beleza rica de eternidade; / eternidade, de beleza rica”.  Mas é no soneto           que transcrevemos, em seguida, que o poeta, mais sensivelmente se utiliza do quiasmo e, ao mesmo tempo, mistura inúmeros movimentos rítmicos sinuosos, verdadeiras ondas de plurissignificações cognatas, com vocábulos que estendem e distendem suas sílabas, em expressivas sinéreses e diéreses, observadas nas rimas das duas quadras deste belo poema, construindo, com isso, os precisos decassílabos com suas cesuras heroicas. Observemos:
  


CONVIVENDO

Aqui, neste convívio harmonioso,
na nossa relação homem/mulher,
eu vejo quanto és um ser precioso,
eu vejo quanto sou um ser qualquer.

Afirmo, sob um tom bem ruidoso,
com toda a nitidez que se requer:
Tu és um ser humano grandioso
e eu nem sombra tua sou sequer.

No nosso conviver humano é quando
me sinto mais e mais te contemplando,
me sinto mais e mais um contemplado.

No nosso conviver interessante,
te vejo muito mais apaixonante,
me vejo muito mais apaixonado.


Em todos os poemas encontramos inúmeros artifícios, tanto na construção sintática, quanto na forma de elaborar o pensamento. São enjambements, hipérbatos, anáforas, quiasmos, hipálages, antítese, um enorme número de fenômenos da estilística, muitas vezes num só poema, como exemplifica o soneto AMARRANDO O SOL, numa temática mitológica grandiloquente, falando sobre os povos incas da América do Sul. Hipérbatos, anáfora e enjambement surgem neste, podemos dizer, um dos mais bem elaborados sonetos, quanto à morfologia e estrutura sintática empregadas, com inúmeras e nítidas características parnasianas, onde o Sol corresponde ao Prazer, sendo o quarto verso o único decassílabo sáfico, construindo o próprio ritmo do alegre milagre da vida. Transcrevo-o para o leitor visualizar estas observações:

AMARRANDO O SOL

Tal como os incas, numa grande lida,
em mim, em meu espírito, em meu ser,
quero amarrar o sol... O do prazer,
o da alegria de curtir a vida.

Pra que, ficando, em mim, possa manter
do espírito, na pedra esculpida,
bem preso, amarrado e sem saída,
o sol da alegria de viver.

O povo inca, gente culta e brava,
ter o sol amarrado, mais buscava,
prendê-lo sobre a pedra, mais queria.

Eu, como os incas, numa ação ousada,
do espírito, na pedra entalhada,
quero amarrar o sol... O da alegria!
            
Quanto aos tipos de poemas utilizados, como já dissemos, predomina o soneto clássico, em versos decassílabos, predominando os heroicos, e alguns estruturados em versos alexandrinos, clássicos e modernos, com uma variedade enorme de esquema de rimas, predominando, no geral, o esquema de estrofes: abba  baab  ccd  eed .

As sextilhas são compostas por versos alexandrinos clássicos, perfeitos, com o seu quebrado de 6 sílabas, muitas vezes um hemistíquio, num esquema de rimas aabccb, variando as palavras rimadas nas sucessivas estrofes de cada poema. Variam, também, o número de sextilhas em cada poema apresentado.

Os versos livres, em poemas modernos, são soltos, desestruturados, mas com o mesmo vigor significativo do poetar nas estruturas clássicas e tradicionais.

O condutor lírico de sua imagética continua sendo o amor à mulher amada, o amor à vida e o amor a tudo que o empolga. Raramente, e só por antítese, o poeta estrutura seus versos fora dessa linha, condutora do eu-lírico, que desenvolve seu universo intimista e sofisticadamente singelo. Exemplo disso, podemos encontrar no soneto A RAIVA, quando o poeta em tom discursivo, atropelando a sintaxe métrica, em expressivo enjambement, traz o amor à cena, por oposição, por antítese, portanto, estando o título, apenas, ressaltando o contrário. Com esse ardil estilístico, o poeta exorcizará o mal na chave de ouro do soneto: “não se deve ter raiva de ninguém”.

Já havia dito, analisando estilisticamente o seu soneto, IPÊ-AMARELO, de seu primeiro livro, “Amor em Evidência”, que as diversificadas estruturas métricas, em seus sonetos, lembram os ritmos, em quiasmo, do autor paraibano de EU E OUTRAS POESIAS, longe das metáforas e das comparações encontradas nos versos de IDEALISMO, poema mórbido de Augusto dos Anjos. Todos os sonetos de Ayrton Mafra são, com raríssimas exceções, em versos decassílabos heroicos, o metro das epopeias, o metro das grandes emoções. Contudo, é com essa força rítmica, com seus quiasmos e suas inversões sintáticas, que Ayrton Mafra irá exaltar o amor e a mulher amada, pois em sua obra poética não existe o amor falso das hetairas, dos sibaritas, das Messalinas e de Sardanapalo...

Ayrton exalta o amor sem o padecimento da dúvida, da rejeição, da amargura, afastando-se do drama barroco do sofrimento, do mal do amor do século XVI, que, negado, ou impossível de ser alcançado, levava os poetas ao desencanto e ao definhamento. Sua poesia é um canto de louvor à felicidade, que invade seu ser e o eu-lírico explode em manifestações rítmicas de todos os tipos, utilizando-se de inúmeros recursos poéticos constantemente nos versos de Arte Maior. E serão, justamente esses hipérbatos, enjambements, condicionantes metafóricos líricos que alongarão a amplitude de suas manifestações românticas. Ayrton Mafra é um poeta romântico pelo sensualismo velado que se manifesta timidamente em sua poesia (AMOR QUER ATITUDES); por seu vocabulário simples ao declarar-se à mulher amada, expressando toda sua felicidade em amar, exemplificado no último terceto do soneto AMO-TE MAIS isso exemplifica: “Te amo e vou dizer, feliz da vida, / que, agora, meu amor, minha querida, / te amo muito mais do que te amei”. Seus versos explicitam o romantismo através de inúmeras metáforas ligadas à natureza como fonte da beleza, recheadas de sinestesias, metáforas evocativas, sempre dignificando a figura da mulher ideal, personificada em sua amada esposa (APAIXONADO – AS FLORES). Seus versos cantam como um singelo menestrel e registram formas expressivas que bem poderiam integrar o patrimônio imaterial de um novo lirismo poético, considerado o amor como lenimento, embora “ainda como um fogo muito forte; / agora, bem mais forte e bem mais vivo! ” (AGORA, MUITO MAIS) e não como um amor contraditório, enquanto sofrimento. A poesia é sublime por parecer impenetrável, pois é só observar o que dissera sobre o amor o nosso poeta maior: “Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer” (Luís de Camões). 

Assim, o tema do amor, combinado com a alegria e o prazer,  é uma constante na obra de Ayrton Bento Mafra, bem como a religiosidade, o pagão versus o profano, o carnal, a mistura de todas as tendência hedonistas, porque somos humanos, porque temos alma, porque é a alma que nos diferencia dos demais animais e nos coloca em outro plano simbólico... Todos esses assuntos perpassam seus poemas, muitos também dedicados a familiares, a pequenas coisas e lembranças, a figuras históricas, enfim, a tudo que o poeta vê e sente, por mais abstrato que seja, observando sempre e reagindo ao mundo, com a força das informações adquiridas, responsáveis pela formação de seu repertório.  

Pode-se dizer, ainda, que em “Alegria”, encontramos muitos poemas que se apresentam como verdadeiros cromos visuais, numa sinestesia transformadora, que dá às suas composições a qualidade necessária, para que as mesmas se coloquem entre as mais significativas formas de versos de Arte Maior de nossa literatura. A obra poética de Ayrton Mafra é magnífica e imensa. Ela está muito além das amarras e dos carimbos declaratórios dos estilos de Época, porque é universal, enquanto expressão do mais profundo sentimento humano: o amor. Se é parnasiana, quanto à forma, ou se é romântica quanto ao fundo, o fato é que Fundo e Forma se adequam, num frenesi rítmico, estrutural e conceitual, a ponto de nos comover, envolvendo-nos, com sua fantástica técnica de nos apresentar o belo e tudo aquilo de que não somos capazes de transfigurar. Só ao poeta é dado o direito de transgressão. Da transgressão que cria, que produz novas formas, formas expressivas com novos significados. O poeta diz o não-dito e aceitar essa nova concepção da sua realidade é aceitar o poeta em toda a sua magicidade. Ler suas criações é se resignar a contemplar silenciosamente a expressão do belo, extasiando-se diante da beleza, que nos envolve emocionalmente. Sua poesia está à espera de um estudo crítico isento de pruridos estéticos e preconceituosos. Que se apresentem os mais eruditos da crítica pura!

Para analisar uma obra tão densa quanto extensa, além de se exigir do crítico literário engenho e arte, precisa-se definir o seu lugar de nascimento, que parece não ser aqui e agora. Nesse momento resignemo-nos somente em nos deleitarmos com esses magníficos versos de meu amigo Ayrton Mafra, um poeta perfeito, um ser humano excepcional. Foi, portanto, com imenso prazer que li e tentei preparar o caminho para que a sua obra seja estudada por especialistas, pois se trata de um dos mais significativos poetas da região do Vale do Itajaí que, com seus versos em ritmo clássico, surpreende nosso espírito e nos acalanta com a doce e fabulosa “Alegria” desse seu terceiro livro de poemas que, como ele mesmo disse, ao fim do primeiro soneto, é “preciosa como a gema do brilhante  /  brilhante como a luz da poesia”.  


ATÉ A PRÓXIMA
































8 de maio de 2019

MISTÉRIOS


- MISTÉRIOS -



Realmente existimos porque nossas vidas dependem de companhias. Não se pode entender o homem isolado, em solidão. Somos uma espécie social e dependemos do outro. Só por ficção e na ficção, o homem vive isolado.
Não vou contrariar, agora, os mais significativos doutores das ciências sociais e muitos entusiasmados psicólogos das mais avançadas linhas francesas, de viés psicanalítico, pois deixei os grandes centros em que atuava no meio de verdadeiras multidões, vivendo em ambientes repletos das mais instigantes e significativas figuras, que pretensamente interagiam comigo, para vir para o campo, para juntar-me aos cantos dos pássaros e aos mugidos do bom gado gordo, que pasta nas relvas dos campos. Mas sinto-me, hoje, como já me sentia outrora, solitário, muitas vezes. Aposentado, escolhi a paz da cidade do interior, rodeada de fazendas, com suas imensas voçorocas dentro de íngremes terrenos, transformados em pastos de poucos bois e muitos cupinzeiros.
Mas faz parte da vida envelhecer. Não um envelhecer sem propósitos, como estação terminal de uma breve viagem, mas um envelhecer com um significado robusto que justifique a alegria de se sentir útil, nem que seja para se lamentar em missivas tristes, às vezes indecifráveis, sem estilo e, possivelmente, até sem destinatário. O importante é conviver, interagindo com o próximo de qualquer forma, pois a solidão é amedrontadora e poucos sabem como lidar com ela.
Às vezes sozinho, nessas regiões isoladas, ela – a solidão –  me inspira e me faz pensar que sou mais forte do que realmente o outro pensa que não sou. Ficar livre da mesquinhez do meu vizinho não é uma boa? Não ser prejulgado por cabecinhas ridículas e presunçosas não é uma dádiva? Para me aliviar das confusões mentais que embaralham as muitas reflexões que faço, quando pretendo criar um texto mais requintado, escrever um poema, ou simplesmente fazer um rol das necessidades comezinhas para as compras da venda, refugio-me sempre em meu quarto de leitura. Lá produzo com satisfação, sozinho, boca calada e pensamento falante. É a solidão produtiva e benfazeja.
Mas há outra, mais amedrontadora, até doentia. Fujamos dessa. A vida exige multiplicidades de atitudes e clama por muitos outros tipos de alegria e êxtase. Realmente não somos uma ilha. Temos um compromisso atávico com a multiplicidade de acontecimentos que nos fazem pessoas sociais. Vivendo, aprendi a afastar todo o tormento que nos isola e que nos aprisiona. Mas aprendi, por outro lado, a viver a talvez gostosa dualidade barroca, que projeta a alegria de viver em grupo de equivalentes e recrimina o pluralismo, restringindo a aglomeração, tudo, muitas vezes, por pura incompreensão dos fatos, ou por se estar limitado a adquirir repertórios mais sofisticados. Mesmo agora um tanto isolado, procuro sempre alguém para confirmar se estou vivo mesmo.
Mas a vida de quem já muito viveu é mesmo misteriosa, quando criadora de situações dicotômicas. Para que ela seja digna tem de ser entendida e respeitada pelo outro. Todos nós temos de saber conviver com esse burburinho especial que alucina, porque encanta, mas que também mata, porque deprime. Saber viver nesses limites é um mistério e é para poucos. Devemos nos preparar para vivermos em grandes grupos e também em regiões de pouca densidade demográfica. É bom experimentar tudo, sem esquecer que a vida exige e reclama por atenção. Mas em todas as situações, todos nós gostamos de ser úteis. “Só o homem valoriza a utilidade! ”. Li isso num jornalzinho que circulava num asilo para idosos, ao visitar um parente de meu pai que lá só ficava sentado...  e nunca mais esqueci.  Os mistérios da vida não foram explicados nas escolas regulares, por onde todos nós passamos, quando estudamos os mercantilismos; os socialismos; os positivismos; os estruturalismos; os revisionismos e todos os demais ISMOS possíveis e imaginários de nossa alucinada cultura clássica, enquanto ciência. Esses mistérios, os mistérios da vida, pertencem a um outro sistema simbólico, não se iludam!
Numa tarde nevoenta de oração, na igrejinha da cidade interiorana em que agora vivo, lembrei-me da visita que fiz, há muitos anos, à românica ou muito mais antiga Catedral da Sé, em Braga. Lá, depois de percorrer os silenciosos corredores de pedras escuras, com artes de todas as épocas, penduradas nas paredes descascadas, perguntei ao solitário guia como os corpos de dois bispos do século XVII, lá enterrados, estavam ainda intactos. Aquele cansado funcionário, já idoso, de aparência frágil, com rugas profundas em seu rosto macilento e triste, que morava só, num pequeno cômodo, anexo à catedral, depois de duas horas rodopiando comigo por púlpitos e pedras, repetindo mecanicamente todas aquelas estórias escritas nas etiquetas coladas às vitrines dos suntuosos monumentos do interior sagrado daquele templo bracarense, respondeu-me, sentindo-se útil, pela única vez em que eu o solicitei, que aquilo representava um mistério de Deus. E transformando-se, agora alegre e feliz, gritava contente, cumprindo sua missão de guia: - “Mistérios de Deus. Mistérios de Deus! ”

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Quem sou eu

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.