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1 de março de 2018

UMA ESTRADA VELHA CHEIA DE POESIA





         Ruy do Carmo Baptista foi poeta e radialista. Natural de Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro, trabalhou na primeira hidrelétrica de seu estado natal, construída no rio Macabu, ingressando nas Centrais Elétricas Fluminenses S.A., onde se aposentou, na cidade de Campos dos Goytacazes. Manteve por mais de 20 anos um programa matutino de rádio em Campos: “Alvorada Sertaneja”. Pertenceu ao “Círculo de Estudos Literários e Filosóficos Farias Brito”, em Macaé, e frequentou a “Academia Pedralva – Letras e Artes”, em Campos. Teve com a Professora Ivone Rabello Tavares quatro filhos, Edméia, Rui, José e Talita, que perpetuaram sua memória de poeta e cantador, publicando suas composições neste livro, editado na cidade de Campos dos Goytacazes, em 2014.
            Sua poesia mistura a fala caipira do norte-fluminense com o falar culto e semiculto dessa mesma região onde nasceu, viveu e produziu suas composições em versos curtos, característicos da lírica surgida na Península Ibérica. Os versos de Ruy Baptista mesclam seu desempenho fonético variado, praticado na escolha de vocábulos, fases feitas e metáforas regionais, entre outras situações linguísticas, mas soando diferente da fala caipira do interior paulista, onde a principal característica é o “r” vibrante retroflexo, muito intenso, parecendo deter o som de muitos desses fonemas. Essa linguagem presente no caboclo do norte fluminense, juntamente com a fala característica do “r” caipira do interior de São Paulo, uma variante vibrante apical, rolada, retroflexa, anterior, do fonema original “r” é uma das características marcantes que vão fazer a diferença entre o Português do Brasil e o Português de Portugal, numa de suas inúmeras diferenças, contudo, sempre mantendo uma unidade significativa nessa imensa diversidade. À guisa de maior e melhor esclarecimento, mesmo lidando com textos escritos, parece-nos que, do mesmo modo, o “s” chiado, típico do falar do carioca, se interiorizou pelos inúmeros municípios do norte do Estado do Rio de Janeiro e, por incrível que possa parecer, essa pronúncia foi-nos trazida pelos próprios portugueses, a partir de 1808 e se caracterizou como sinal de prestígio, pois era assim que aqueles que frequentavam a Corte falavam. Com isso, cresce a tese de que o sotaque carioca do fim do século XVIII se assemelhava ao do português que por aqui viveu, por exemplo, nas rodas elegante da sociedade da época, frequentadas, por exemplo, pelo poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, no centro da cidade do Rio de Janeiro de antanho.
Portanto, na fala caipira, registram-se nesse pequeno livro de poemas os sons foneticamente utilizados pelo povo da região em que o poeta viveu, sem  inventar nenhuma pronúncia, dando um retrato, isto é, reproduzindo fielmente as variações fônicas do linguajar caboclo da região do Norte Fluminense dos Campos dos Goytacazes. O mesmo deveria acontecer em seus programas radiofônicos, pois o título e seu personagem isso denunciam: “Alvorada Sertaneja” e “Sô Tião”. Seria uma referência exemplificativa o poema DESILUSÃO DE CABOCLO, página 21. Versejando no registro culto da língua, Ruy Baptista dá preferência aos dois mais significativos metros do idioma português, a redondilha maior (sete sílabas métricas) e a redondilha menor (cinco sílabas métricas), em estrofações variadas. Os versos de ESTRADA VELHA são, em sua maioria, construídos com palavras simples, constantes do vocabulário ativo da língua, mas eivados de regionalismos, alguns, hoje, desconhecidos, talvez, do leitor citadino. Assim, a flora e a fauna são exemplos significativos, que aparecem no poema CAMPOS DOS GOYTACAZES, pág. 71. São raros os exemplos de vocábulos menos conhecidos do leitor distanciado da vida interiorana. O poema RECURSO DO CAIPIRA, pág. 29, assim inicia: “Eu viajava cansado / conduzindo um gado erado”. Erar é verbo e significa a ação de engordar o gado. Na lenda contada em versos, uma forma poética de Ruy Baptista manter viva a tradição oral, encontramos no próprio título o vocábulo CABORÉ (pág.105), que no texto é uma espécie de mocho, coruja. No nordeste brasileiro, é filhote de coruja, fixado na tradição folclórica com o ditado “Coruja não tem pai, caboré não tem avô”, e em outros exemplos assinalados, ainda, por Câmara Cascudo. Possivelmente esses vocábulos poderiam suscitar algum ruído no entendimento do leitor. Mas são muito poucos. Isso é interessante, pois os versos de ESTRADA VELHA foram escritos na primeira metade do século XX e muitos termos prendem-se a um regionalismo confinado no norte do Estado do Rio de Janeiro.
            Percebemos, por outro lado, que os poemas deste singelo, mas interessante livrinho (143 páginas, 20 x 14), envolvidos pelo conhecido estilo caipira, que nos apresenta “causos”, e lendas mirabolantes registra a beleza das histórias contadas em reuniões de famílias, e muitos de seus poemas foram escritos para serem cantados (talvez alguns, ou muitos até teriam sido musicados) ao ritmo toante da viola sertaneja.
O resgate desses poemas de Ruy do Carmo Baptista, poeta e cantador fluminense, feito por seus filhos e publicado há poucos anos, em Campos dos Goytacazes, propicia ao leitor um reencontro com os ritmos já não tão presentes hoje nos poetas modernos. São ritmos saudosistas que invocam a força do talento, da luta e da vitória do homem do campo sobre as intempéries da vida na roça; do homem da pequena vila; do homem que labuta na suada e ensolarada lavoura e no trato do gado em pastagens íngremes; nas matas fechadas, onde caça para seu sustento e de sua família, lá no sertão desse nosso interior, agora tão perto dos grandes centros, mas tão distante de nossos pensamentos, quando queremos encontrar um lugarzinho pacato para sermos felizes... O livro de Ruy Baptista possui os ritmos  de um poeta simples, mas ufanista, que nos faz lembrar a estética popular de geniais artistas, impressionados com a beleza intrínseca de nossa terra, num poetar brasílico grandiloquente, como, por exemplo, o de um Catulo da Paixão Cearense.

ATÉ A PRÓXIMA

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.