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7 de maio de 2018

UM FALSO CACÓFATO EM UM POEMA BARROCO




Mattoso Câmara Jr., em seu Dicionário de Linguística e Gramática, nos diz que CACÓFATO é toda cacofonia em que há sugestão de palavras descabidas ou inconvenientes, em virtude do encontro de vocábulos num mesmo grupo de força, onde não há pausa intercorrente. E continua o eminente linguista brasileiro: “O cacófato está latente em muitos agrupamentos vocabulares, normais e até inevitáveis”. E cita como exemplos: “ela tinha”; “não passa disso” e muitos outros.  Antenor Nascentes também dizia que há cacófatos inevitáveis e que não se deve ter vergonha de se pronunciar expressões como “na vez passada”; “o time dele nunca ganhou de ninguém” e outras sentenças desse tipo. Contudo, o mestre filólogo do Idioma Nacional, não aceitava todas essas estranhas sonoridades na língua escrita, deixando claro, então, que a língua é uma pluralidade de “paroles” à disposição do sujeito falante, devendo este saber usá-las com estilo e correção.  Pegando o gancho da dicotomia saussuriana, “langue” X “parole”, é importante ressaltar, também, que existe, a partir do elemento grego KACÓS, É, ÓN, mau, ruim, o termo CACOGRAFIA, CACO + GRAFIA, por influência do francês CACOGRAPHIE.
A cacografia é a grafia errônea dos vocábulos. É um barbarismo ortográfico, que ocorre na escrita dos semialfabetizados. Ocorre, também, na escrita de pessoas com pouca leitura e instrução e aparece na escrita de pessoas que ainda escrevem pelas regras de uma ortografia já fora de uso ou, ainda, por hábito, ou por convicção. Antenor Nascentes dizia em suas aulas (e mantinha o que dizia em suas obras) que escrevia sem respeitar os Acordos Ortográficos (principalmente as regras de acentuação) em vigor na sua época, por convicção e respeito aos estudos e pesquisas filológicas que realizava.   Mas voltando ao CACÓFATO, lembrei-me do primeiro verso do conhecido soneto atribuído a Camões, que inicia assim: “Alma minha gentil, que te partiste”. Durante minhas atividades de professor de Língua e Literatura tive de responder a indagações de alunos e de amigos de outras áreas do conhecimento, a respeito do grupo de força que inicia o soneto 2 (13 – 19) de RH – Rhythmas, primeira edição, de 1595, (RI – Rimas, segunda edição, de 1598). Na realidade, Camões não cometeu nenhum cacófato. Então o que acontece? Trata-se de um “cacófato sincrônico”, a posteriori, e nunca “diacrônico”, pois no século XVI não existia ainda, na Língua Portuguesa, a palavra MAMINHA, que, segundo Antônio Houaiss (Dicionário da Língua Portuguesa), só tem registro escrito, em português, no Século XVIII (1789, MS ¹), com o significado de mama pequena, mamilo. Como o soneto tradicionalmente atribuído a Camões é um dos mais conhecidos e belos atribuído ao vate português, em seu caminho à suntuosidade conflitual do barroco, vamos mostrar a pequena análise textual feita sobre ele pelo eminente Professor Leodegário A. de Azevedo Filho, um dos maiores estudiosos da lírica camoniana em todos os tempos.  Antes de apresentar o poema, é bom lembrar que não existe nenhum autógrafo de Camões em seus poemas em RH e em RI, pois suas composições líricas foram editadas depois de sua morte. Leodegário Azevedo Filho, debruçando-se por mais de 30 anos sobre a lírica camoniana, estabeleceu, cientificamente, o problema da autoria, publicando sua tese em mais de 9 extensos volumes, editados pela Casa da Moeda de Portugal. Hoje, sua teoria é aceita por quase toda crítica especializada do mundo todo. 

Eis o poema:


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo deste corpo descontente,
repousa tu nos Ceos eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde sobiste,
memória deste mundo se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
algua  cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

pede a Deos, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo dos meus olhos te levou.

Fontes quinhentistas: PR – 10; CrB – 31; LF – 8v; M – 12; E – 36v; RH – 4v; RI -5v.
Fonte básica: LF – 8v.
ABREVIATURAS
PR – “Índice” do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro.
CrB – Cancioneiro de Cristóvão Borges.
LF – Cancioneiro de Luís Franco Correa.
M – Cancioneiro de Madrid.
E – Cancioneiro da Biblioteca do Escorial.
RH – Rhythmas, primeira edição, de 1595.
RI – Rimas, segunda edição, de 1598.

       Eis a análise:

   A tradição impressa, a partir do segundo verso (tão cedo deste corpo descontente), uniformizou o uso da palavra VIDA, empobrecendo o vocábulo do soneto: “tão cedo desta vida descontente”. Muito provavelmente, entretanto, aí se tem o CORPO e não a VIDA, como se tem MUNDO no sexto verso e não VIDA (memória deste mundo se consente). O substantivo CORPO, em sentido filosófico-religioso, refere-se à matéria de que todos somos constituídos, em oposição à alma, nossa parte imaterial. A partir do Maneirismo, começa a desarticular-se a harmonia clássica existente entre os dois termos do binômio CORPO e ALMA, numa tensão que iria chegar às últimas consequências no Barroco.

ATÉ A PRÓXIMA

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.