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23 de agosto de 2018

UMA VIAGEM A UM JARDIM DE QUASE 100 ANOS




Há, praticamente cem anos, Ribeiro Couto escreveu alguns dos mais significativos poemas de sua lírica intimista, nevoenta e com prenúncios modernistas. A publicação se deu alguns anos depois. Refiro-me ao livro O Jardim das Confidências, publicado por Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, em 1921 e que teve uma tiragem de mil exemplares. Foi sua estreia como poeta. Foram versos escritos entre a adolescência e a idade em que o rapaz está pronto para amar, sem saber que todo o amor inclui o sofrimento, parodiando, romanticamente o poeta português, Guerra Junqueiro.

    A cena se estende pela cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.  Uma cidade cheia de glamour e de barões do café. Palacetes e jardins, dentro e fora das casas. A elegância dos transeuntes e o charme dos primeiros automóveis importados pela Ford dão um toque de aristocracia à pacata e quase bucólica capital do histórico Estado brasileiro.
São Paulo, nessa época, era um espaço repleto de novidades culturais e começava a despontar para o progresso: non ducor, duco.

      Em 1955, morei, durante um ano, na capital paulista e ainda tive a oportunidade de ver uma cidade de raros encantos em suas ruas, praças, avenidas e bairros residenciais com seus floridos jardins. Encantei-me, muito antes de Caetano Veloso, com o cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, repleto de restaurantes - lembro-me do Restaurante Leão – espargindo o guloso perfume de seus sanduíches e pizzas, misturado a um cheiro diferente da gasolina, queimada pelos automóveis que passavam por aquelas esquinas de deselegâncias, que tocariam, anos depois (1978), o coração do poeta cantor. Sofri com a garoa fina e fria, quando caía nas imensas chácaras por onde passava a pé e também de bonde, querendo ir para Santo Amaro. Meu coração sentia - eu bem sei- a explosão de uma invisível emoção inconsciente de um EU adolescente que se viu envolvido pela penumbra da serra, num contraste com o mar do Rio de Janeiro, minha terra natal. Era a diferença entre o sol do Rio e a chuvinha fina paulistana. Com Ribeiro Couto deve ter acontecido o mesmo. De Santos do sol e do mar, do calor do Rio, onde se formou em Direito (1919), para um retorno à sombra dos dias cinzentos de São Paulo, deve ter sido um contraste imenso e significativo e que o marcaria, sem dúvida alguma, despertando no artista o EU melancólico, encontrado nos Jardins das Confidências.

        Em 1921 saiu seu primeiro livro de poesias e Manuel Bandeira não economizou palavras de elogio ao poeta, praticamente um jovem adolescente e tímido. “Este livro é, em todos os sentidos, uma obra-prima: no seu feitio, como na sua essência espiritual”, dizia Bandeira, que viria a ser o mais clássico dos poetas modernista, em sua crônica “Apologia de um Poeta”, escrita no jornal carioca O DIA, de 9 de outubro de 1921.

    Quando eu morava em Jacarepaguá frequentava, nas férias escolares, um grêmio cultural, fundado por um ex-aluno do Colégio Militar/RJ, que não seguiu a carreira das armas. Optou pelas letras, pela poesia e pela filosofia. Lembro-me que foi numa das primeiras reuniões do “GCMA” (Grêmio Cultural Machado de Assis) que eu conheci um professor de Língua Portuguesa no início de sua carreira. Esse professor fora convidado para presidir uma reunião festiva, num sábado à tarde, quando seria lido e aprovado o Estatuto daquela agremiação, idealizada por jovens estudantes e que deveria divulgar e estimular a prosa e a poesia na região oeste da cidade do Rio de Janeiro. Belíssima pretensão! Esse professor era Evanildo Bechara, meu mestre, hoje meu amigo, meu filólogo preferido, como digo na intimidade. Evanildo Bechara pertence, atualmente, à Academia Brasileira de Letras e é Presidente de Honra da Academia Brasileira de Filologia, de cujos quadros, com muito orgulho, faço parte. Lá, naquele humilde e incipiente refúgio cultural, frequentado por jovens deslumbrados pelas letras em prosa e verso, homenageava-se também, em ocasiões festivas, poetas de nossa literatura, recitando-se seus poemas e falando-se de sua história de vida. Então, o presidente daquele humilde e longínquo grêmio, talvez, e, com certeza, hoje desaparecido, ofuscado pela fantasmagórica névoa do esquecimento, homenageou naquele sábado de minha distante juventude o poeta Ribeiro Couto, lendo o poema O Desconhecido, de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS.

Quem é esse que está, sob a lâmpada morta, / Infantil a chorar debruçado na mesa?

     Foi o meu primeiro contato com o poeta. O “penumbrismo” em sua poesia me instigava, da mesma forma como mexia com minha imaginação a morbidez impressionista muito presente em sua poesia, envolta numa melancolia explícita e num erotismo velado. Eu vinha de um ambiente familiar muito comprometido com o parnasianismo, tanto na tentativa estética de compreender o belo, quanto nas atitudes apolíneas de comportamento social, cobrando, sempre, minha família de mim a busca pela perfeição.... Meu avô materno, tios e um tio-avô foram amigos de Olavo Bilac e admiravam sua poesia, do mesmo modo a de Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Théophile Gautier, Leconte de Lisle e Théodore de Banvi. Minha tia, Leopoldina Saraiva, era professora de francês e poetisa premiada. Moravam todos numa bonita quinta, uma construção no estilo neoclássico, repleta de arabescos externos, predominando em seu interior quadros e estatuetas com motivos e figuras, representando passagens da mitologia grega. Não aderi a esse estilo de vida, portanto não abracei a estética parnasiana. Já o simbolismo e o impressionismo, trazendo, quase sempre, embutidos em si os mistérios do mórbido penumbrismo, mexeu com o meu EU adolescente e eu poderia, agora, envolvido pelo espírito poético de Ribeiro Couto, dizer que aquele simbolismo impressionista muito me marcou, ficando tudo isso, para sempre, impregnado em minhas ilusões e pretensões literárias. 

     Ribeiro Couto estreou na poesia (1921) um ano antes da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo. Sua mensagem poética se apresenta envolvida em uma atmosfera simbolista, reagindo flagrantemente ao ambiente parnasiano, que no dizer de Ronald de Carvalho “estava saturado de girândolas, de fumaradas espessas, de fogos e labaredas alterosas”. Mas a poesia de Ribeiro Couto, nesse seu livro de estreia é, basicamente, uma poesia de transição, no início do século XX. Iria, contudo, pouco se modificar. Em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS há uma poesia de sombra, silêncio, mansuetude e noturnismo. O mesmo ocorreu com a poesia de Ronald de Carvalho, que apontaria um novo movimento intimista que surgia, ao analisar esse primeiro livro de Ribeiro Couto. Deu a esse movimento intimista o nome de “penumbrismo”, no artigo intitulado Poesia da Penumbra. Esse sentimento intimista e penumbrista, percebido por Ronald de Carvalho, já se sentira também na obra de Mário Pederneiras. A esse período da história de nossa literatura, quando autores se lançam na direção de uma vanguarda e novos estilos esperam o combate e cantam e agonizam, às vezes, em campo aberto, dá-se o nome de “sincretismo”. Vejamos o que diz Afrânio Coutinho:

Fenômeno facilmente observado na evolução da história literária, é o que se verifica nos períodos de transição ou zonas intermediárias: o aparecimento de escritores e poetas de valor incontestado, em cujas obras se infiltram tendências de escolas antagônicas, chocam-se princípios que se contradizem, sentimentos e emoções que se contrariam. E isso porque são atingidos pelas influências e reflexos do fim e do princípio de escolas que se sucedem. Sofrem tais escritores e poetas de uma inconsciência literária, tão compreensível e perdoável, que em nada lhes desmerece o valor global da obra”.  (In, A Literatura no Brasil, Vol. III, Tomo 1, p. 311).

    Está, portanto, localizada a obra de Ribeiro Couto, O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, dentro desse período sincretista que atravessou a poesia brasileira, antes de se afirmar nas novas estéticas, que não tardariam a surgir.

  Então, a poesia de Ribeiro Couto, tão entusiasticamente apresentada por Bandeira, como vimos no início, só iria ser inserida no Modernismo, depois de uma insistente crítica embasada nas modernas teorias literárias, por parte de estudiosos, que perceberam que não se tratava de um poeta menor dentro do movimento que aflorou em 1922. Seus companheiros, poetas naquele momento de transição estética dos anos 20, principalmente Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade vão com ele manter uma viva troca de ideias, através de uma profícua correspondência, mostrando visões estéticas muito diferentes, mas sem deixarem de reconhecer o valor significativo da poesia de Ribeiro Couto. Sobre o livro que hoje tem quase 100 anos, diz Vera Lins, doutora em Letras pela UFRJ e professora de Teoria da Literatura:

O olhar é forma de conhecimento, contemplação produtiva que faz o sujeito perambular como vagabundo, andarilho que vê e ouve a cidade. Assim aparece o EU lírico nos primeiros livros de Ribeiro Couto, revelando um imaginário próximo a Baudelaire e aos simbolistas. É com vagos olhos de passante que percorre as ruas do Rio e de São Paulo, fixando luz, cores, objetos e pessoas em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, POEMETOS DE TERNURA E MELANCOLIA E UM HOMEM NA MULTIDÃO”. (In, Ribeiro Couto, uma questão de olhar. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.)

O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS é dedicado à cidade de São Paulo, “às suas manhãs nevoentas de sol frouxo”. Poemas de adolescente ferido pela volúpia de amores, que são recriados e transfigurados em uma atmosfera de meios tons, de penumbra, de sombras, de névoas, de disfarçado erotismo em um ambiente que retrata motivos simples do dia-a-dia, temáticas que desenvolvem um motivo central, que é o sentimento de paz, embora a alma sofra como sofre a alma de todos os poetas...

  Um ano depois do lançamento de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, em 1922, realiza-se, no Teatro Municipal da cidade de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. Foram três noites de apresentações de recitais, conferências, declamações, grupos de artista e intelectuais tentando mostrar as novas concepções e tendências estéticas de arte. Abaixo a “ars gratia artis” dos parnasianos! O objetivo era a destruição das velhas formas artísticas na literatura, na música e nas artes plásticas. Os organizadores procuravam apresentar e discutir os princípios da chamada arte moderna. Pairavam, também, sobre os participantes muitas dúvidas a respeito do que se estava querendo contestar. Um dos mais representativos intelectuais do movimento, Oswald de Andrade, num esforço de síntese, afirma: "Não sabemos o que queremos. Mas sabemos o que não queremos." A cidade se dividiu entre os futuristas (renovadores) e os passadistas (conservadores).

    Em 1922, o escritor Graça Aranha (1868-1931), que pretendia romper com o  passado, aderiu abertamente à Semana da Arte Moderna, criando uma cisão na fechada e reacionária Academia Brasileira de Letras, defendida por seu líder, o escritor Coelho Neto (1866-1934). Essa contenda entre opiniões estéticas diferentes criou uma das maiores polêmicas acadêmicas, como há muito tempo não se via.        

    O público aplaudia as manifestações contestatórias por uma nova estética, tanto  vindas de um primeiro equivocado discurso de Graça Aranha como das leituras de textos vanguardistas de Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade.  Mas a grande sensação do evento foi Ronald de Carvalho, na segunda noite, quando ele leu o poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira que, por motivo de saúde, não pode comparecer. O poema fora uma irônica crítica endereçada aos ideais parnasianos e ao seu grande e principal representante, Olavo Bilac, que ainda era cultivado pela maioria do público, uns poucos privilegiados com o conhecimento teórico da estética dominante na época. A reação foi estrondosa. Vaias, gritos, batidas de guarda-chuva nas cadeiras e poltronas, um alvoroço total, até a sessão ser interrompida. E a gritaria no interior do Teatro Municipal não parava: FOI! NÃO FOI! FOI! NÃO FOI! Citando Sergius Gonzaga, pode-se dizer que “metaforicamente, com sua iconoclastia pesada, o poema delimita o fim de uma época cultural”.

   Mário de Andrade, um dos principais teóricos do movimento modernista, sintetiza os propósitos dessa nova articulação cultural, como uma forma de legar às gerações futuras os frutos que colherão, a partir das sementes agora lançadas nos palcos da Semana de 1922, isto é, a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira; a atualização intelectual com as vanguardas europeias e o direito permanente de pesquisa e criação estética. 

   Ribeiro Couto participou da Semana de 22 e sua contribuição para a vida literária de então seria este seu O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, muito distante, é verdade, do rompimento total com o passado estético, mas com uma forma envolvente de montar um novo ritmo, lento, é verdade, mas suave como toda sua poesia. Revalorizou, então, o verso alexandrino, desgastado pelo soar sistemático das cesuras parnasianas. Seus versos possuem o doce ritmo da chuva fina que molha sem encharcar:

“A chuva fina molha a paisagem lá fora. / O dia está cinzento e longo.... Um longo! ”

É a poesia da impressão e da intensificação, do momento diáfano que não se repete nunca:

“Tem-se a vaga impressão de que o dia demora”.

“Parece que morreu a vida. / Parece que morreu a vida / Na velha praça adormecida”.

Uma visão impressionista do mundo que o cerca e o motiva:

“Tenho uma sensação tonta e maravilhosa / De estar vagando no ar, leve como uma pluma”.


Dando preferência ao verso alexandrino, em seu primeiro livro de poesia, Ribeiro Couto, em compasso quaternário, no poema “No Cais”, repete as estruturas métricas, proporcionando a continuidade e a duração da ação:  

“Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar...”

     Segundo Manuel Bandeira, analisando esse mesmo poema, “No Cais”, diz que “os pobres de poesia, aqueles que só conseguem perceber as realidades objetivas não conseguirão compreender as imaginações férteis, pois elas ganham sentido mais alto, alongam-se em perspectivas mais fundas, quando não se transmudam a realidades astrais”. No poema “No Cais, a realidade subjetiva do abraço dado à mulher, foi o pequenino Suave Milagre da poesia”, continua Bandeira, após ouvir de um crítico e poeta que tal abraço é um absurdo num mundo de duras realidades. Bandeira continua analisando os versos de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, mostrando que a forma de emoção e sugestão provém muito da musicalidade neles contida.

    Esse recurso formal de repetição das estruturas métricas, aliado a sucessivas tentativas rítmicas de polifonia, em versos alexandrinos de compasso ternário, dão evidentemente, à poesia de Ribeiro Couto uma imensa musicalidade, já percebida pela análise de Rodrigo Melo Franco, logo após a publicação de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, quando assinala que “todas as poesias de Ribeiro Couto são canções”.

    Manoel Bandeira, em sua Apologia de um poeta, aqui citada, no início desse trabalho, disse, em 1921, o que a Vera Lins percebeu, ao analisar a obra de Ribeiro Couto, em seu trabalho, já citado também, datado de 1997. Lá está, no poema “Mascarada” o subjetivismo elaborado, responsável por refazer todas as realidades objetivas do poeta. Assim, a poesia de Ribeiro Couto, poeta intimista, quase “flâneur” nesses versos, se caracteriza por uma forma subjetiva de mostrar a realidade através de seu olhar, que também é uma forma de conhecimento para a contemplação produtiva, pois é perambulando e observando que, segundo Bandeira, consegue Ribeiro Couto ser arguto e cínico. É necessário conferir:

Mascarada

“Passastes a sorrir, frívolas Colombinas,
A sorrir.... Para mim? Eu entre a multidão,
Eu também vos lancei confete e serpentinas...

Em torno a multidão agitava pandeiros.
A berrar, toda a praça era uma aclamação.
“Bravos! ” E eu via rir vossos olhos brejeiros.

Fostes passando.... Tive uma fina tristeza.
Perdido, o meu olhar errava sobre vós...
Seria Momo o deus do amor? Ah! Que incerteza!

E ao desaparecer da linda mascarada,
Entre ruflos e o guizalhar dos dominós,
Levei ao rosto a minha mão: voltou molhada...
Seria Momo o deus do amor? Pobre de nós!

Ribeiro Couto em seu livro de estreia, como nos seguintes, tem preferência pelo verso alexandrino, expressando-se ainda em versos curtos de oito sílabas e seu quebrado de quatro. Em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS adota versos alexandrino, decassílabo e octossílabo. Sua poesia é espontânea e suave, realizada sob uma atmosfera de sonho e devaneio, de sombras e umidade. Constrói com o simbolismo da lâmpada o seu campo semântico, ligado à imagem do brilho nas trevas, imagens antitéticas que envolvem grande número dos poemas de seu primeiro livro, desenvolvendo com essas temáticas o seu Leitmotiv. Sua mensagem poética se realiza nessa simbologia através de metáforas animistas, numa visão impressionista da realidade fugitiva:

“Sobre a mesa de estudo, a lâmpada adormece”.

“A lâmpada é a melhor companheira que existe / Para as horas do desespero que esmorece.../ Tua recordação é uma lâmpada triste...”

“A luz da vela, amarelada e meio morta”

“A lâmpada vermelha esfuminha o teto”

“Lá na sala uma lâmpada sozinha”

“Quem é esse que está, sob a lâmpada morta”

“Ao centro a lâmpada cochila”

“A lâmpada evoca em vigília...”

“E o mortiço clarão da lâmpada quieta”.

A sedução pela luz mortiça da lamparina atinge seu auge no poema:

O Desconhecido

Quem é esse que está, sob a lâmpada morta,
Infantil, a chorar debruçado na mesa?
Olá, rapaz, que tens? Conta.... Contar conforta.
E em tua boca eu sinto estrangulada, presa,
A confissão que assim, sob a lâmpada morta,
Entre livros, terá mais tristeza, tristeza...

Pões os olhos em mim: pobres olhos molhados
Em que o pranto desceu como um véu vermelho.
Conta o que tens.... Enxuga os olhos desgraçados...
E ele chorava para mim, dentro do espelho.

O poeta cria um cenário simples. Tudo é simples. A mesa é simples. A lâmpada é simples. Simples é também a atitude infantil da personagem. Mas o engenhoso “set”, onde o poema se realiza é complexo. Estamos diante de uma variação cenográfica da tela de Velásquez, As Meninas, onde os retratados (em Velásquez são dois, os reis de Espanha) só são conhecidos pelo reflexo do espelho. Todos os olhares são para os retratados, mesmo o olhar do autor, tanto no poema quanto na pintura e lá, por motivos óbvios. A realidade se consubstancia pela imagem especular, que é destorcida e invertida e, enquanto linguagem, tenta reprimir o real. O diálogo se estabelece no poema entre o EU lírico e a castração do sujeito. A fala é interditada no sujeito e a melancolia aflora. Lá, em As Meninas, Velásquez desponta radiante como criador e como criatura, pois se retrata também. No poema O Desconhecido, Ribeiro Couto se ressente de identidade e não se encontra. A pergunta do criador fica sem resposta, pois a fala da criatura foi interditada pela castração do desejo. A resposta foi o pranto. Poderia ser o riso?

     O primeiro livro de Ribeiro Couto nos traz uma poesia sensorial repleta de imagens plásticas, ressaltadas por um vocabulário táctil que demonstra a ansiedade adolescente de tocar, de ver com as mãos, precipitando uma temática sensualista, que o acompanhará até seu último livro de poemas, LONGE (1961). Tudo, neste primeiro livro, está envolvido por um erotismo disfarçado, levando a seu espírito uma sensação de paz e de êxtase amoroso. Pode-se isso observar com muita nitidez no poema “O Desejo da Mão” e nos dois versos que seguem: “Esse perfume espalha mãos cheias de afago” e “Vozes quentes de lavadeiras”, onde as sinestesias envolvendo o tato atestam a percepção da realidade através dos sentidos que se interpenetram. A temática sensualista ainda é desenvolvida em versos como: “Sentindo as mãos geladas de abandono”; “Apertando-lhes as mãos murmuro intimamente”; “O teu olhar amigo, as tuas mãos amantes...” e em muitos outros.

    Não poderíamos deixar de assinalar em O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS a  presença da temática da morte, que surge motivada pela enfermidade que se abateu sobre o poeta. Esta temática, embora apresente aspecto destoante e até mesmo antitético, em relação ao Leitmotiv, é por isso mesmo, elemento de contraste que ressalta o motivo central e que pertence a uma estrutura condutora de todo o EU lírico da poesia de Ribeiro Couto. Assim, encontramos no poema “Noite Monótona de um Poeta Enfermo” esta temática desenvolvida, juntamente com a evocação dos cuidados maternos, onde a presença da mãe do poeta aparece aureolada como doce anjo-da-guarda. Mais tarde, a figura de sua mãe se precipitará em uma profunda nostalgia. “Todo o rumor que, lá fora / Chega a meu quarto de doente”.

    Ribeiro Couto em toda a sua obra poética utiliza-se de recursos formais que serão explorados, mais tarde, pelo romancista e contista. O principal recurso formal, a nosso ver, é a técnica do monólogo e do diálogo. Neste seu primeiro livro de poesia essa técnica já se faz notar. Pensamos que já estão ali os primeiros diálogos e monólogos poéticos que aparecerão no seu romance “Cabocla”.

   Sobre os versos de O JARDIM DAS CONFIDÊNCIAS, é interessante assinalar a observação de Carlos Drummond de Andrade, que vê na obra a presença dos temas do cotidiano, envolvidos por um lirismo muito pessoal, além da tristeza e da melancolia. Drummond, em carta, iria dizer que o amigo é o Casimiro de Abreu do Romantismo: “Você, Ribeiro Couto, ficará em nossa poesia com uma nota muito pessoal de lirismo, como ficou o Casimiro de Abreu (peço que não se zangue), como ficará o Manuel (Bandeira), poetas dissidentes, como dizem os profissionais da alegria, mas que encontram sempre repercussão”. Ribeiro Couto lhe responde, concordando.

    A poesia de Ribeiro Couto, em toda a sua obra e principalmente em seu livro de estreia foi toda mansa, sem gestos, sem exaltações. Com tormentos, é verdade, mas com o dom de falar alto.

   Muito mais tarde, quarenta anos depois, com versos maduros, Ribeiro Couto irá exprimir a saudade de seu povo e de sua terra, no livro LONGE, publicado em 1961, pela Editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Lá estão os versos que soluçam tristeza, amor, paixão, à semelhança de um Catulo da Paixão Cearense e de um João Cabral de Melo Neto. Mas isso fica para outra oportunidade.


ATÉ A PRÓXIMA




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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.