“Alegria”
é o terceiro livro do poeta Ayrton Bento Mafra. Antes, havia publicado “Amor em Evidência”, 2009 e “Reflexões”, 2015. Nos três livros desse
extraordinário poeta catarinense, que surge sem alarde, sem grandes
anunciações, sem uma conhecida editora a lhe apresentar ao mundo literário e à
crítica especializada, estão reunidos mais de mil poemas, em forma de sonetos e
sextilhas, todos dentro dos rígidos padrões da arte poética. Ayrton não se
esqueceu de contemplar, em “Alegria”,
o poema moderno. Seu texto modernista não é radical, não desrespeita os ditames
gramaticais nem se transforma em enigmas indecifráveis. Volta-se para o
cotidiano, com um vocabulário sem nenhuma pompa, num aproveitamento poético da
linguagem espontânea, construindo versos livres de rimas, com estrofações, as mais
variadas possíveis. Todas essas publicações, que vieram a lume, foram
preparadas por pessoas de seu convívio diário, seus parentes mais próximos,
filhos e, principalmente, sua esposa. Assim sendo, senti-me extremamente horado
ao receber o convite para preparar uma introdução a esse seu terceiro livro, “Alegria”, que, realmente, é um hino ao
amor e ao próximo, pois o título contagia.... Seus familiares e amigos mais
chegados, sensíveis ao formidável impacto estético que os seus versos lhes
proporcionaram, foram os editores dessa terceira publicação. Eles não só
permitiram que a pródiga e agradabilíssima produção poética de Ayrton Mafra
fosse apreciada publicamente, como ofereceram à crítica literária especializada
um magnífico material, para o surgimento de significativas análises e microanálises
literárias, que, certamente, colocarão o nome de Ayrton Mafra ao lado dos mais
significativos poetas brasileiros.
Como é sabido, toda e qualquer obra
de arte está sempre centrada na ótica do receptor e, por conseguinte, somente
quando o atingir, como destinatário final, estarão as mensagens poéticas, no
caso os poemas de Ayrton Mafra, poeta catarinense da pequena, mas próspera e
bucólica Ilhota, prontas para os mais significativos e diferentes estudos críticos
especializados. Então, chegou o momento. Três livros já estão à disposição do
leitor sensível ao belo.
Não pretendemos, aqui e agora, desenvolver
uma teoria sobre o retorno do metro clássico na poesia moderna, mas e somente
iniciar um movimento para chamar a atenção dos estudiosos a respeito de uma
grande voz poética que trabalha, sim, o verso clássico com o rigor que lhe é
exigido, e que não o aprisiona nas amarras parnasianas, mas o torna
deliciosamente agradável aos ouvidos, suavizando o ritmo alucinado das cesuras
métricas, com um conteúdo variadíssimo de temas que levam-nos a refletir sobre
a vida e o comezinho do dia-a-dia, deixando-nos envolver pela harmonia rítmica,
compassadamente estruturada na singela beleza de suas rimas. Assim essa voz
poética, uma das mais significativas desse pós-modernismo sincrético, lega-nos,
com a publicação desses seus três volumosos e preciosos livros, um texto
poético denso, sem excessos e obediente às mais rígidas estruturas da arte
poética.
O terceiro livro de Ayrton Mafra, “Alegria”, apresenta três tipos de
poemas: o soneto, a sextilha e o poema livre na concepção modernista. Nesse
novo livro, o poeta continua privilegiando o amor e a natureza, como os grandes
temas centrais de sua obra. Portanto, o Leitmotif, responsável pelo
desenvolvimento de seu eu-lírico, muitas vezes intimista, leva-o a ver e a
sentir, de maneira peculiar, o mundo que o cerca, através de ritmos
expressivos, mas vigorosos, tanto nos sonetos como nas sextilhas. O livro inicia
com o soneto que dá nome à obra, numa ode à vida. É uma homenagem à poesia, que
sustenta alegremente seu viver. Para o poeta, a poesia é um bálsamo ao seu sofrimento,
que se apresenta latente, nunca manifesto, e que surge, muitas vezes, por
antíteses, implícito, aqui, no último verso do primeiro quarteto, onde
vocábulos fonéticos, por exemplo, significativamente representativos da vida
como alegria, que suplanta tudo, surgem (bota
– pra cima – sustenta – vida - alimenta): “que
me bota pra cima, me sustenta”, e nos dois últimos versos do segundo
quarteto: “ainda me dá vida, me alimenta, / levanta o meu astral dia após dia”. Estruturalmente, neste soneto,
composto todo por versos decassílabos heroicos, com o esquema de rimas abba –
baab – ccb – ddb – , as duas quadras são a proposição temática e os dois
tercetos a conclusão, chegando-se, ao décimo quarto, o último verso, à chave de
ouro do soneto, uma perfeita e completa semantização da proposta inicial.
ALEGRIA
“Bem viva, mais e mais se implementa
em mim, duma maneira luzidia,
essa coisa chamada de alegria
que me bota pra cima, me sustenta.
Constantemente, em minha companhia,
é ela quem, à flor dos meus setenta,
ainda me dá vida, me alimenta,
levanta o meu astral dia após dia.
Eu sinto, de maneira enorme, imensa,
que ela simplesmente é a presença,
presença que, demais, se evidencia
bonita, importantíssima, constante,
preciosa como a gema do brilhante,
brilhante como a luz da poesia”.
Não é nossa intenção realizar, com o
presente comentário, uma análise estilística desse novo livro de Ayrton Mafra,
nem de alguns de seus poemas, isoladamente, mas pretendemos, isto sim, tentar
mostrar o valor intrínseco de suas produções, pinçando do conjunto dessa
significativa obra poética, que agora o leitor tem em mãos, alguns dos mais
interessantes e significativos artifícios técnicos de que o poeta lança mão,
para construir seu texto lírico. Tentaremos, simplesmente, ressaltar em seus sonetos,
sextilhas e demais poemas, aquilo que, a nosso juízo, é o condutor de seu
lirismo, o amor à vida, fator de transfiguração de uma realidade só sua,
íntima, mas que, ao mesmo tempo, é plural, pois tudo que sensibiliza o poeta é
fruto de observações no ambiente circundante, onde pessoas interagem. Assim, o
poeta se transporta para o outro, com o qual está comprometido socialmente.
Formalmente, para materializar suas
pretensões poéticas, Ayrton recorre a inúmeras formas de criação, sendo o enjambement uma delas em especial e com a
qual trabalha magistralmente. Essa partição da frase de um verso, sem respeitar
as fronteiras claras do sintagma, colocando um termo do sintagma no verso
anterior e o restante no verso seguinte, impulsiona o ritmo da leitura e cria o
efeito de coesão, união, muitas vezes, do fundo à forma [ó]. O poema ALEGRIA
apresenta esse artifício no primeiro verso. Observem: “Bem viva, mais e mais se implementa / em mim, duma
maneira luzidia...” O enjambement se apresenta às centenas, em toda a obra,
cada um com suas interpretações subjetivas, mas consistentes, criando formas
expressivas, que vão dar ao conjunto mais beleza e nos causa encantamento, personificando
um ritmo próprio.
Outro artifício muito empregado pelo
poeta de “Alegria” é a maneira de
construir as frases. Muitas vezes o poeta desloca termos de uma oração, ou
orações de um período. Esses deslocamentos, ou hipérbatos, oferecem ao contexto
a possibilidade de outras interpretações, ou melhor dizendo, fazem com que haja
a possibilidade de se ler o latente, aquilo que está escondido no pensamento do
poeta e que uma simples inversão sintática demonstra manifestamente. Assim, no
soneto A ARTE VERDADEIRA, pode-se ler: “a
mente ser, dos versos, a rendeira” (ser a mente a rendeira dos versos). Aliás, esse hipérbato é combinado, muitas
vezes com um outro artifício, um cruzamento morfológico. Esse artifício, ou
figura de construção, também muito usado por Ayrton, se chama quiasmo, uma maneira
bimembre de construir períodos, em que os elementos mórficos se cruzam em “X”,
realçando sonora e semanticamente as frases do período envolvidas. Observem,
ainda no mesmo soneto: “O que me encanta mesmo é, certamente, / os
versos feitos renda pela mente; / a mente ser, dos versos, a rendeira” (mente X mente).
No soneto A OBRA FICA, o quiasmo se apresenta no primeiro terceto e pelo
cruzamento dos significantes morfológicos a ideia desenvolvida cresce e se presentifica
com toda a sua força significativa. Observem: “Sim, deixa quando morre, na verdade, / beleza rica de eternidade; / eternidade, de beleza rica”. Mas é no soneto que transcrevemos, em seguida, que o
poeta, mais sensivelmente se utiliza do quiasmo e, ao mesmo tempo, mistura
inúmeros movimentos rítmicos sinuosos, verdadeiras ondas de plurissignificações
cognatas, com vocábulos que estendem e distendem suas sílabas, em expressivas
sinéreses e diéreses, observadas nas rimas das duas quadras deste belo poema,
construindo, com isso, os precisos decassílabos com suas cesuras heroicas.
Observemos:
CONVIVENDO
Aqui, neste convívio harmonioso,
na nossa relação homem/mulher,
eu vejo quanto és um ser precioso,
eu vejo quanto sou um ser qualquer.
Afirmo, sob um tom bem ruidoso,
com toda a nitidez que se requer:
Tu és um ser humano grandioso
e eu nem sombra tua sou sequer.
No nosso conviver humano é quando
me sinto mais e mais te contemplando,
me sinto mais e mais um contemplado.
No nosso conviver interessante,
te vejo muito mais apaixonante,
me vejo muito mais apaixonado.
Em todos os poemas
encontramos inúmeros artifícios, tanto na construção sintática, quanto na forma
de elaborar o pensamento. São enjambements, hipérbatos, anáforas, quiasmos,
hipálages, antítese, um enorme número de fenômenos da estilística, muitas vezes
num só poema, como exemplifica o soneto AMARRANDO O SOL, numa temática
mitológica grandiloquente, falando sobre os povos incas da América do Sul.
Hipérbatos, anáfora e enjambement surgem neste, podemos dizer, um dos mais bem
elaborados sonetos, quanto à morfologia e estrutura sintática empregadas, com
inúmeras e nítidas características parnasianas, onde o Sol corresponde ao
Prazer, sendo o quarto verso o único decassílabo sáfico, construindo o próprio
ritmo do alegre milagre da vida. Transcrevo-o para o leitor visualizar estas observações:
AMARRANDO O SOL
Tal como os incas, numa grande lida,
em mim, em meu espírito, em meu ser,
quero amarrar o sol... O do prazer,
o da alegria de curtir a vida.
Pra que, ficando, em mim, possa
manter
do espírito, na pedra esculpida,
bem preso, amarrado e sem saída,
o sol da alegria de viver.
O povo inca, gente culta e brava,
ter o sol amarrado, mais buscava,
prendê-lo sobre a pedra, mais queria.
Eu, como os incas, numa ação ousada,
do espírito, na pedra entalhada,
quero amarrar o sol... O da alegria!
Quanto
aos tipos de poemas utilizados, como já dissemos, predomina o soneto clássico, em
versos decassílabos, predominando os heroicos, e alguns estruturados em versos
alexandrinos, clássicos e modernos, com uma variedade enorme de esquema de
rimas, predominando, no geral, o esquema de estrofes: abba baab ccd
eed .
As
sextilhas são compostas por versos alexandrinos clássicos, perfeitos, com o seu
quebrado de 6 sílabas, muitas vezes um hemistíquio, num esquema de rimas
aabccb, variando as palavras rimadas nas sucessivas estrofes de cada poema.
Variam, também, o número de sextilhas em cada poema apresentado.
Os
versos livres, em poemas modernos, são soltos, desestruturados, mas com o mesmo
vigor significativo do poetar nas estruturas clássicas e tradicionais.
O
condutor lírico de sua imagética continua sendo o amor à mulher amada, o amor à
vida e o amor a tudo que o empolga. Raramente, e só por antítese, o poeta
estrutura seus versos fora dessa linha, condutora do eu-lírico, que desenvolve
seu universo intimista e sofisticadamente singelo. Exemplo disso, podemos
encontrar no soneto A RAIVA, quando o poeta em tom discursivo, atropelando a
sintaxe métrica, em expressivo enjambement, traz o amor à cena, por oposição, por
antítese, portanto, estando o título, apenas, ressaltando o contrário. Com esse
ardil estilístico, o poeta exorcizará o mal na chave de ouro do soneto: “não se deve ter raiva de ninguém”.
Já
havia dito, analisando estilisticamente o seu soneto, IPÊ-AMARELO, de seu primeiro
livro, “Amor em Evidência”, que as
diversificadas estruturas métricas, em seus sonetos, lembram os ritmos, em
quiasmo, do autor paraibano de EU E OUTRAS POESIAS, longe das metáforas e das
comparações encontradas nos versos de IDEALISMO, poema mórbido de Augusto dos Anjos.
Todos os sonetos de Ayrton Mafra são, com raríssimas exceções, em versos
decassílabos heroicos, o metro das epopeias, o metro das grandes emoções. Contudo,
é com essa força rítmica, com seus quiasmos e suas inversões sintáticas, que Ayrton
Mafra irá exaltar o amor e a mulher amada, pois em sua obra poética não existe
o amor falso das hetairas, dos sibaritas, das Messalinas e de Sardanapalo...
Ayrton
exalta o amor sem o padecimento da dúvida, da rejeição, da amargura,
afastando-se do drama barroco do sofrimento, do mal do amor do século XVI, que,
negado, ou impossível de ser alcançado, levava os poetas ao desencanto e ao
definhamento. Sua poesia é um canto de louvor à felicidade, que invade seu ser
e o eu-lírico explode em manifestações rítmicas de todos os tipos,
utilizando-se de inúmeros recursos poéticos constantemente nos versos de Arte Maior.
E serão, justamente esses hipérbatos, enjambements, condicionantes metafóricos
líricos que alongarão a amplitude de suas manifestações românticas. Ayrton
Mafra é um poeta romântico pelo sensualismo velado que se manifesta timidamente
em sua poesia (AMOR QUER ATITUDES); por seu vocabulário simples ao declarar-se
à mulher amada, expressando toda sua felicidade em amar, exemplificado no último
terceto do soneto AMO-TE MAIS isso exemplifica: “Te amo e vou dizer, feliz da vida, / que, agora, meu amor, minha querida, / te amo muito mais do que te amei”. Seus versos explicitam o
romantismo através de inúmeras metáforas ligadas à natureza como fonte da
beleza, recheadas de sinestesias, metáforas evocativas, sempre dignificando a
figura da mulher ideal, personificada em sua amada esposa (APAIXONADO – AS
FLORES). Seus versos cantam como um singelo menestrel e registram formas expressivas
que bem poderiam integrar o patrimônio imaterial de um novo lirismo poético,
considerado o amor como lenimento, embora “ainda
como um fogo muito forte; / agora,
bem mais forte e bem mais vivo! ” (AGORA, MUITO MAIS) e não como um amor contraditório,
enquanto sofrimento. A poesia é sublime por parecer impenetrável, pois é só
observar o que dissera sobre o amor o nosso poeta maior: “Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um
contentamento descontente; É dor que desatina sem doer” (Luís de
Camões).
Assim,
o tema do amor, combinado com a alegria e o prazer, é uma constante na obra de Ayrton Bento Mafra,
bem como a religiosidade, o pagão versus o profano, o carnal, a mistura de
todas as tendência hedonistas, porque somos humanos, porque temos alma, porque
é a alma que nos diferencia dos demais animais e nos coloca em outro plano
simbólico... Todos esses assuntos perpassam seus poemas, muitos também
dedicados a familiares, a pequenas coisas e lembranças, a figuras históricas,
enfim, a tudo que o poeta vê e sente, por mais abstrato que seja, observando
sempre e reagindo ao mundo, com a força das informações adquiridas,
responsáveis pela formação de seu repertório.
Pode-se
dizer, ainda, que em “Alegria”, encontramos
muitos poemas que se apresentam como verdadeiros cromos visuais, numa
sinestesia transformadora, que dá às suas composições a qualidade necessária,
para que as mesmas se coloquem entre as mais significativas formas de versos de
Arte Maior de nossa literatura. A obra poética de Ayrton Mafra é magnífica e
imensa. Ela está muito além das amarras e dos carimbos declaratórios dos
estilos de Época, porque é universal, enquanto expressão do mais profundo
sentimento humano: o amor. Se é parnasiana, quanto à forma, ou se é romântica
quanto ao fundo, o fato é que Fundo e Forma se adequam, num frenesi rítmico,
estrutural e conceitual, a ponto de nos comover, envolvendo-nos, com sua
fantástica técnica de nos apresentar o belo e tudo aquilo de que não somos
capazes de transfigurar. Só ao poeta é dado o direito de transgressão. Da
transgressão que cria, que produz novas formas, formas expressivas com novos
significados. O poeta diz o não-dito e aceitar essa nova concepção da sua realidade
é aceitar o poeta em toda a sua magicidade. Ler suas criações é se resignar a
contemplar silenciosamente a expressão do belo, extasiando-se diante da beleza,
que nos envolve emocionalmente. Sua poesia está à espera de um estudo crítico
isento de pruridos estéticos e preconceituosos. Que se apresentem os mais
eruditos da crítica pura!
Para
analisar uma obra tão densa quanto extensa, além de se exigir do crítico
literário engenho e arte, precisa-se definir o seu lugar de nascimento, que
parece não ser aqui e agora. Nesse momento resignemo-nos somente em nos
deleitarmos com esses magníficos versos de meu amigo Ayrton Mafra, um poeta
perfeito, um ser humano excepcional. Foi, portanto, com imenso prazer que li e
tentei preparar o caminho para que a sua obra seja estudada por especialistas,
pois se trata de um dos mais significativos poetas da região do Vale do Itajaí
que, com seus versos em ritmo clássico, surpreende nosso espírito e nos
acalanta com a doce e fabulosa “Alegria”
desse seu terceiro livro de poemas que, como ele mesmo disse, ao fim do
primeiro soneto, é “preciosa como a gema
do brilhante / brilhante
como a luz da poesia”.
2 comentários:
Oi,Prof.
Há quanto tempo!
Sempre sua admiradora e seguidora.
Obrigado, Thereza. Descobri esse poeta em Blumenau. Sua poesia é clássica quanto à forma e seu Litmotiv é a alegria contida no amor à mulher amada, mas aborda inúmeros temas da vida é na convivência social
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