Uma recensão do livro FUGIR
Por: Luiz Cesar Saraiva Feijó
O romance de Jean-Philippe Toussaint, FUGIR (FUIR), prêmio europeu Medici de 2005, foi publicado por Les Éditions de Minuit, Paris, em 2005. É uma ação passada num verão qualquer da atualidade, em três momentos, com curtos blocos distintos dentro de cada uma das três partes da obra. Isso tem um significado interessante, pois dá ao leitor a sensação de estar recebendo informações significativas a todo instante sem a angústia de esperar um desfecho, mas excitando-se sempre, pois a forma de tratar o tema é a de um vai-e-vem enunciativo que cria imagens impactantes, fortes e poéticas. O crítico Jacques-Pierre Amette já dissera, aliás na quarta-de-capa da primeira edição (Lés Éditions de Minuit,7,rue Bernard-Palissy, 75006, Paris), que “o romance apresenta um verdadeiro estilo toussaint, na forma, no rigor, na pontuação, na psicologia: tudo perfeito”.
O autor, com esse estilo vibrante, com suas frases fracionadas entre o discurso indireto e indireto-livre, predominando a justaposição e a coordenação sobre a subordinação, apresenta uma narrativa diferente, uma forma atraente e inovadora de se dizer algo, de se contar algo, de se transmitir uma informação. Inicia-se, aí, portanto, o predomínio da conotação sobre a denotação, dando ao texto um caráter literário, sem, contudo, deixar de estabelecer com a realidade um vínculo de verossimilhança. Junta-se a isso tudo um ritmo exótico, marcado por uma pontuação sui-generis. Nesse romance, Jean-Philippe Toussaint desenvolve o tema do amor, da angústia e da paixão com um texto misto de referencialidade e prosa poética, especialmente caracterizada por um impressionismo lingüístico, repleto de languidez nos sintagmas que estruturam os períodos, muitas vezes envolvido pela linguagem difusa das metáforas e hipálages, em tempos e lugares diferentes. Em muitos momentos, o enunciado se apresenta colorido com as luzes verdes e azuis das lanternas chinesas e das composições ferroviárias, com as luminárias dos vagões e dos sinalizadores da linha férrea, faiscando de sentimentos. A enunciação prepara o texto, que fala da referencialidade factual. Uma inovadora forma de se referir aos objetos envolve as personagens e, psicologicamente, prepara o leitor para ficar sempre preocupado com o desfecho da trama. O tempo do romance também contribui para isso. Esse tempo distribuído em espaços diferentes dá ao leitor a sensação de estar próximo de um texto épico, não faltando para isso o ambiente grego da ilha de Elba. Construído por formas verbais oscilantes, o romance flui entre a hipótese e a realidade, iniciando a Parte I com a onisciência da primeira pessoa, que narra, no pretérito e no presente, os acontecimentos do verão, tempo em que vive Maria, numa Paris moderna, contrastando com uma Xangai quase caricata, de onde o personagem-narrador fala com ela, por telefone celular. A chegada do narrador a Xangai, mostra-nos a realidade de uma Chima, captada mais pela sensibilidade poética do autor (sem preconceitos), do que pelas reflexões sobre a realidade oriental, sempre postas em confronto com a européia. Aliás, estão nesses casos a descrição das estações chinesas de trem, hotéis, bares, mercado e comércio do entorno das grandes avenidas de Xangai, numa narrativa de sugestões e impressões, tudo impregnado por uma antítese penumbrista, tudo tão luminoso quanto opaco, levando-nos ao suspense, que é outra forma utilizada, para prender a atenção do leitor. Mas a sensibilidade do autor também capta a deterioração das partes da cidade menos favorecidas, numa linguagem característica do mais significativo estilo realista (“para entrarmos num velho edifício de tijolo aparente, onde, numa penumbra macilenta, vagueavam cheiros peçonhentos de couve rançosa e de mijo”). A minúcia e o detalhismo também são comuns e aparecem, principalmente, nas Partes I e II, em inúmeras passagens exemplificativas. Parece, ainda, que o suspense, como se observa no início da Parte I (“o meu passaporte vendo-o passar de mão em mão temendo vê-lo subitamente desaparecer como num conto do vigário entre as mãos de um dos inúmeros funcionários atarefados por detrás do balcão”), se alimenta de uma série de descrições minuciosas de figuras humanas e de ambientes, onde a luminiscência continua a impressionar o autor e as cores dos neóns chamam, amiúde, sua atenção para manter o leitor na linha do encontro da solução do emaranhado construído pela enunciação.
Na composição da textura da linguagem de Jean-Philippe Toussaint , observa-se a utilização de um estilo elíptico, caracterizado por cancelamentos sintáticos, o que imprime rapidez na leitura, ao mesmo tempo que proporciona reflexão, pois o leitor não acostumado a essa técnica de escrituração, medita instintivamente sobre os acontecimentos para se dar conta do que lhe é narrado. Esse estilo e o discurso indireto livre são, como já dissemos, mais uma criação estilística da forma toussaintliana de narrar. (“A confusão era completa (começava a me sentir mal). Maria?” ).
No menor bloco do romance, localizado na Parte I do romance, autor como narrador, traz o suspense à cena, pois o que importa é saber o que vai acontecer com Maria ou com o relacionamento dele com ela. Depois, não há mais nenhum pequeno bloco com esse objetivo.
Uma outra técnica narrativa é a modo de afirmar, interrogando, como que num diálogo com o leitor. O narrador, pergunta ao leitor alguma coisa e diz o que o leitor precisa saber para entender a seqüência dos acontecimentos, sem nenhum diálogo com qualquer outra personagem: (“...não tinha nada de particular para fazer em Xangai. Não é verdade?”).
O romance FUGIR, de Jean-Philippe, em suas três partes, apresenta bem focadamente, em cada uma delas, respectivamente, a precipitação do erotismo, a fuga explícita e a explosão do amor no mar. O erotismo surge de forma pretendida, camuflada algumas vezes, outras mais acentuada, mas nunca explicitamente acontecida, sempre em lugares e tempo diversos. O erotismo está diluído na forma mais simples de um terno sentimento de desejo: “e percebi que alguma coisa de terno estava nascendo”. Ou, ainda, em: “aproximei-me dela e desajeitadamente no meio da multidão dei-lhe um beijo, com uma timidez confusa, que me perturbou e por causa disso nossos olhares se cruzaram um instante e os nossos lábios não tão por acaso se roçaram”. Mas esse desejo vai crescendo até tomar outros caminhos, numa linguagem que sustenta muitas emoções, até ser interrompido pela presença de Maria, contraponto direto e significante, impeditivo da plena consumação amorosa entre o narrador e Li Qi, porque ela, Maria, é o ponto de partida e a chegada dessa fuga proposta por Toussaint.
O suspense é anterior ao erotismo. Prepara o prazer, pois causa a ansiedade que precipita a expectativa do relacionamento carnal. Contudo, se esse preparo existe, o desfecho da relação sexual se interrompe, justamente pelos acontecimentos misteriosos e paira sobre a ação uma sensação de que, a qualquer momento, uma tragédia se abaterá sobre os dois envolvidos no jogo de amor, num vagão do trem, por exemplo, onde “uma das portas de passagem entre os vagões tinha sido partida, há pouco sem dúvida, estilhaços de vidro cobriam o chão do corredor e vestígios de sangue seco estrelavam a parede, uma mancha maior, central, e milhares de gotinhas secas à volta, minúsculas, mineralizadas, duma cor vermelho acastanhada”.
A fuga na moto indiabrada que se movimenta pelas ruas fervilhantes e perigosas de Pequim, na Parte II do romance, antecedida por um preâmbulo de minuciosas descrições de locais e situações, prende o leitor e desencadeia enorme tensão. É um momento muito significativo, onde a fuga se consubstancia denotativamente. Esse momento significativo do romance se precipitará, na terceira e última Parte, a explosão do amor no mar, formando um bloco de significações distintas, dando ao texto de Toussaint uma linguagem especial, isto é, uma relevância significativa na literatura da modernidade européia. Nessa terceira e última parte do romance o autor envolve o texto poético num suspense amargurante, sem dar pistas do desenlace, deixando-nos uma dúvida angustiosa, sempre entre um final feliz ou uma tragédia no mar. A opção vem em favor do amor e da vida... “et Marie pleurait dans mes bras, dans mes baisers, elle pleurait dans la mer”... e Maria chorava nos meus braços, nos meus beijos, chorava no mar.
Portanto, nesse livro, a vida como tragédia, sempre por acontecer, quer no toque de um celular, quer nas braçadas de Maria, ao entardecer, desaparecendo por trás das rochas, nadando no mar, traz uma reflexão sobre a vida e o lugar do amor no tempo. Estilo e formas especiais da narrativa que Jean-Philippe Toussaint nos mostra nesse romance publicado agora, em junho de 2008, pela Bertrand-Brasil, tradução de Joaquim Pinto da Silva.
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