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3 de maio de 2007

UMA PAMONHA DIFERENTE

Mais uma crônica do cotidiano de Luiz Cesar Saraiva Feijó*



UMA PAMONHA DIFERENTE




Aqui pela orla marítima, na calçada da praia, entre a areia e a Avenida Atlântica, existem inúmeras barracas, todas seguindo um desenho arrojado e muito bem cuidadas. Vendem caipirinha e outras bebidas, muitos aperitivos e água de coco, verde e gelado. Entre uma barraca e outra aparece um interessante comércio de guloseima. São as tendas de churros paraguaios e milho cozido. Diga-se, a bem da verdade, que o seu preparo é higienicamente correto, sendo muito apreciado por todos os turistas desta Região Sul do Brasil. Seu consumo atinge, na alta temporada de verão, a impressionante marca de mais de cem mil espigas/mês, o que dá a este balneário a primeira colocação, entre todos os demais, quanto ao consumo dessa gramínea. De seu grão, originário da América do Sul, preparam-se muitas iguarias doces e salgadas, como o curau, a papa, a polenta, o angu, para citar apenas as mais conhecidas. Ah! Ia me esquecendo da pamonha, do tupi pamu’ñã, com desnasalização e hiperbibasmo. Isso mesmo, hiperbibasmo o que vem a ser o deslocamento do acento tônico de uma palavra na passagem de uma língua para outra. Vejam só, esse nome, com todas essas coisas complicadas que aconteceram, desde a língua de nossos índios até o português é aquele gostosíssimo bolinho feito com milho verde, leite de coco, manteiga, canela, erva-doce e açúcar, cozido em folhas do próprio milho ou em folhas de bananeira, atado nas extremidades. Por outro lado, é inacreditável que esse substantivo feminino, depositário de um ritual quase sagrado desde a culinária indígena até as casas de nossas famílias, passando pelo requinte de restaurantes nobres, possa ter adquirido sentidos nada recomendáveis para uma papa de milho verde da mais alta qualidade e incomparável sabor. Isso porque chamar alguém de pamonha é o mesmo que dizer que uma pessoa é tola, preguiçosa, desajeitada, pastelão. Vejam só o que a tal da metáfora faz com as palavras...

Um dia, passeando pelas redondezas desta cidade turística de Balneário Camboriú, onde atualmente resido, a 70 quilômetros de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, chamou-me a atenção uma grande placa, anunciando Pamonhas Típicas da Região. Ora, quem não gosta de pamonha. Pura, genuína, quentinha, sem metáfora alguma? Parei o carro e fui direto ao balcão pedir uma delas, que pode ser doce ou salgada. Pedi doce. Folheando o cardápio da casa para ver o que poderia beber, fiquei, realmente, muito assustado, pois lá estava impresso: PAMONHAS DO PROFEÇOR. Isso mesmo, professor com c cedilha. Não acreditei. Chamei o garçom e perguntei se a gerência da casa não havia se equivocado na grafia. Ele me respondeu que aquilo era marca própria do fornecedor, que possuía, inclusive, registro na Propriedade Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, tudo aprovado legalmente pela burocracia vigente. Mostrou-me, também, um “bander” na entrada lateral do estabelecimento que anunciava a famigerada marca registrada. Pensei novamente na metáfora. Onde poderia haver metáfora naquela monstruosidade gráfica? Não. Nada justificava aquele c cedilha numa palavra tão nobre como professor. Pensei também no modismo do marketing barato, tão em voga hoje em dia. Mas tenham a santa paciência, professor com c cedilha é, sim, um crime de lesa-educação.

Não podia tomar outra atitude em face daquele absurdo. Suspendi o meu pedido, deixei de lado os hiperbibasmos e as metáforas e fui direto para o meu escritório redigir um texto, bem referencial, de repúdio, àquela aberração lingüística.

Hoje, passados alguns anos, após minha furiosa indignação, convertida em argumentação lingüístico-pedagógica, pois sempre comentei isso com meus alunos e com todas as pessoas de meu relacionamento, observei que alguma coisa aconteceu com aquele fornecedor das tais pamonhas desaforadas, porque, pelo menos, do Município de Balneário Camboriú, elas desapareceram, verdes de vergonha! Não digo completamente, porque estão voltando, de mansinho, em bares escuros e “fajutos” de beira-de-estrada. Aproveitam-se do surto de ignorância que graça nesse Brasil de todos os erros e vão matando a fome do povo que não repara nessas coisas bobas, próprias dos letrados...

*Crônica publicada originalmente no jornal português, O PROGRESSO DA FOZ, Porto.



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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.