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17 de novembro de 2006

CRÔNICAS LINGÜÍSTICAS

Vamos apresentar algumas crônicas, já publicadas ou não, cujo tema esteja ligado, de algum modo, aos fatos gramaticais ou filológicos. Iniciaremos por essa que nasceu com a correspondência que mantenho com meu amigo Ivan Soares de Araújo, neurologista, doutorado pela USP e com tese defendida na Alemanha.







PARAFERNÁLIA

O meu amigo Ivan estava mesmo bravo naquela noite. Pela Internet se comunicou comigo e desandou a lenha em cima dos apresentadores de programas de televisão. Mas ele dizia que não eram somente os profissionais da telinha que empregavam à torta e à direita o vocábulo parafernália totalmente fora de sua significação. Aí eu tive mesmo de tomar fôlego e tentar acalmá-lo, com umas brincadeiras didáticas, para entrar no assunto que, diga-se de passagem, é bem interessante.

Vamos lá, meu caríssimo Ivan, respondi-lhe. Parafernália é o que não vai faltar aqui nesse texto. Oh! Meu Deus! Será que eu vou casar sem dote? Bem, eu já casei, havia-me esquecido disso! Creio que o amigo também já casou, se não, o que a D. Sílvia representa neste sacrossanto lar?

Antenor Nascentes diz que parafernal é um substantivo que significa bens que não foram comprometidos no dote, ou o próprio dote. Antônio Houaiss, em seu excelente dicionário diz que parafernal, como adjetivo, é “o que se diz de cada um dos bens da mulher casada não comprometido no dote” e como substantivo feminino significa “um conjunto de objetos de uso pessoal”. São pertences acessórios. São apetrechos necessários a uma certa atividade. São coleções de coisas usadas ou velhas. São tralhas.

Bem, de qualquer forma, prende-se ao latim parapherna, orum, isto é, um substantivo plural. Logo parafernal ou parafernália é um nome considerado pluralia tantum, isto é, que só existe no plural. Logo, parafernália é plural, etimologicamente. Mas, meu boníssimo amigo, amante das palavras de formas exóticas de nosso idioma, como é que o povão vai entender esse negócio de pluralia tantum e outras coisas mais esquisitas ainda que existem na língua?

Veja meu amigo! Não adianta se aborrecer com isso, porque as palavras são mesmo misteriosas. Têm corpo e alma. Têm um grande coração e corre nelas um sangue tão vermelho quanto o nosso e, às vezes, as maltratamos tanto que elas sangram com nossas agressões terríveis e desumanas. Nós possuímos instinto animal... Destruímos tudo. Modificamos tudo. Desarrumamos tudo. Machucamos as coitadinhas...

Mas também agredimos as palavras de modo incruento, sem fazê-las sofrer aparentemente. Forçamos a barra e as transformamos, chegando mesmo a modificá-las tão exageradamente que ficam quase irreconhecíveis... Agredimos a sua personalidade e elas passam até a significar coisas bem diferentes do tempo em que estavam na Santa Paz do Senhor. Muitos lutam gratuitamente com as palavras como se elas fossem malvados inimigos. Mas lutar uma boa luta é preciso e importante! Lutar para sabermos se elas não vão nos agredir com suas inúmeras formas de persuasão e armadilhas morfológicas. Elas são muito organizadas e se agrupam em grandes exércitos de substantivos, verbos, adjetivos, preposições, interjeições, comandados, às vezes, só para nos despistar, por um pronome oblíquo átono de baixa patente e nos enganam redondamente. Mas a vida é assim, mesmo, meu amigo! É guerra a toda hora! Tudo está mudando a todo instante com incrível rapidez, sem aviso prévio. Veja só o preço dos combustíveis! Um horror! Essas mudanças também acontecem com as palavras, na sua luta incessante pela sobrevivência. Elas mudam sem nos dar a menor satisfação. Mas, o mais interessante é que elas mudam por interferência nossa. E, aí, você pode ver que somos cúmplices dessa metamorfose etimológica. Com parafernália aconteceu quase tudo isso. Ela já significou, na sua infância, coisas do dote das noivas. Hoje significa um tipo especialíssimo desse mesmo amontoado de coisas, só que mais sofisticadas. Objetos do mundo elétrico-eletrônico, físico-nuclear, talvez. Dizendo assim, mostro que as palavras têm infância, juventude, maturidade, velhice... Algumas morrem e deixam saudade... Outras são duras na queda, resistem e se transformam.

Meu bom amigo, não brigue com a mídia por causa das palavras. Eu sei que a mídia nos desinforma, nos vende caro muitas bobagens disfarçadas em cultura, mas também nos diverte e presta inúmeros serviços. Aliás, mídia é mais uma dessas palavras estranhíssimas. Uma palavra vira-casaca. Mas isso é para mais tarde, para outro dia ou outra noite!

Até a próxima!

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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.